Por breves segundos senti a sensação
da morte, foram rápidos, mas suficientes para me amedrontar. Minha visão
escureceu seguida de um atordoamento com sensação de desmaio. Segurei-me na
cadeira respirando mais profundamente na tentativa de recobrar os sentidos,
enquanto Cibele colocava sua mão sobre meus ombros e perguntava:
- você está bem?! Tenha força,
acalme-se.
- não. Não foi nada, apenas fiquei
atordoado. – respondi, enquanto firmava o olhar no monitor para voltar a
conversar com minha mulher. Aquela notícia realmente me surpreendera.
- mas nem sabia que ele tinha
problema no coração!
- ninguém sabia. Foi de repente. Fulminante.
Meu pai acabara de morrer de infarto
e eu estava a milhares de quilômetros de distancia, não poderia nem ir ao
enterro. Era pesquisador em uma base na Antártica, estava ali pouco mais de
três meses, em pleno inverno glacial. Ontem tinha ocorrido uma das piores
tempestades que eu já havia presenciado, ainda bem que o tempo melhorou e eu
pude conversar com minha família, porque em situações tais até a conexão com o
satélite de comunicação se torna difícil. Bom em termos, porque apesar de matar
a imensa saudade da minha mulher e filho recebi a triste notícia da morte do
meu pai.
Logo apareceu Cibele acompanhada do
médico Odílio. Ele trouxe um comprimido, provavelmente algum tipo de calmante,
colocando na minha mão juntamente com um copo d’água.
- toma que vai lhe fazer bem.
Sem questionar engoli e fui arejar a
mente.
- o deixe ficar um pouco só – ouvi
Odílio sussurrando a Cibele ao tempo em que me afastava.
Sem pensar nas hostilidades da
natureza fui sentar-me do lado de fora da base. Com todas as roupas especiais
que tive tempo de vestir o tempo do lado de fora já não parecia tão agressivo
como os torrentes pensamentos que invadiam meu ser naquele momento. O tempo,
impressionantemente, estava calmo, com uma temperatura suportável, muito
diferente do dia anterior. Parecia que Deus comungava com minha dor. Ainda me
confortou criando uma aurora austral belíssima.
Muito me questionei, aliás, tal
indagação era recorrente, desde os vinte noves anos quando consultei minha
família, incluído, principalmente minha mulher e filho, sobre a decisão de
integrar o melhor grupo de pesquisadores para exploração na Antártida, com a
condição de por meses permanecer na base, longe de tudo e todos de quem amava.
Mas minha família foi a primeira, sem
qualquer hesitação, incentivar, pois amavam-me o suficiente para suportar a dor
da distancia por aquilo que sabiam ser, também, o meu outro amor: pesquisa
científica avançada sobre clima, um dos fenômenos cruciais para existência da
vida na Terra.
Estas coisas penetravam meu cérebro
como raios cósmicos num breu imenso e misterioso. Surgiu, como sem querer,
então num processo óbvio, de retilíneas vertigens que se consomem em razão para
emoção e delineia as feições daquele homem de trinta e hum anos, no meio do
gelo, cercado pelo planeta que se movimenta silencioso, em suas arrebatadoras
questões catastróficas com um quê de nada, para um olhar descuidado uma revelação
de absoluto nada. Mas este todo deserto branco imóvel, sob um céu indescritível
é tudo. Assim, aquilo passou bem refletir como filme que se repete quando se
gosta. Minha vida rodava em projeção na mente.
Lembro do primeiro dia que escapei da
morte. Recordo tão nitidamente que parece que foi ontem. Tinha entre oito e
nove anos. Meu pai, eu e minha mãe estávamos viajando rumo um rancho onde nos
divertíamos sem fim. Numa ultrapassagem por um enorme caminhão de sucata meu
pai deu de frente, em sentido contrário, com outro carro que também vinha em
velocidade. Neste ponto lembro apenas de ver tudo rodar e, ainda sinto os
solavancos de uma máquina de lavar em centrifugação. O cinto de segurança
parecia bater no meu peito com caibro de madeira. Tudo em volta era uma
montanha russa descarrilada. Mas foi muito rápido, os momentos que se seguiram
é que pareceram uma eternidade. No carro apenas grunhido e gemido. Tudo estava
fora do lugar normal. O teto era chão, o chão era teto.
Ouvi, ao longe, gritos. Depois, bem
próximo, pessoas conversavam e ordenavam coisas que tinham que ser feitas. Eu
sabia que poderia morrer, pois estava ciente da doença que transformava meus
ossos em vidro, então tentei, ao máximo que pude não me mexer.
Naqueles momentos infinitamente
angustiantes senti alguém me puxar e colocar-me sobre uma superfície reta e me
envolver com coisas que deixaram todos meus membros retos e imobilizados.
Olhei de lado e vi meu pai na mesma
situação, sobre o que parecia uma maca e com ataduras. Olhei pra frente e vi o
corpo da minha meio dentro, meio fora do carro que estava com os pneus voltados
para o céu.
Daí em diante tudo se passou como se
passa após acidentes. Fomos levados ao hospital e ficamos internados dias.
Acontece que o pior estava por vir. Mais que o acidente foi depois. Ainda em convalescênça, em casa, um míssil explode em mim. Minha mãe não havia
resistido aos ferimentos. Eu e meu pai tivemos que superar machucados que
demoravam a cicatrizar e ferimento profundo na alma que nunca fechou
totalmente.
Mas o tempo é o senhor de todas as
resoluções. Hoje estou aqui em mais um luto, mais uma vez sem chance de me
despedir.
Minha vida e também ao do meu pai
devemos as pessoas que nos salvaram.
Soube que no carro que vinha ao
contrário e, de certa forma, responsável por sairmos da pista estava um casal
que havia se conhecido no dia 1º daquele ano. Estavam apaixonados retornando de
um chalé fazenda. O rapaz era cirurgião ortopedista e soube exatamente o que
devia fazer, aliás, foi ele quem me operou no hospital próximo que com
antecedência contatou.
Mas, o que me impressiona até hoje é
a pessoa que improvisou macas e imobilizações dos nossos corpos. Era um
andarilho de origem oriental, maltrapilho, cabeludo e mal-cheiroso. Pegou a
sucata do caminhão e construiu habilidosamente e rapidamente peças que nos
salvaram.
Mas as recompensas, ainda que
tardias, chegam. Soube que o cirurgião contratou o mendigo e, deixou de ser
mendigo obviamente. Alguns anos depois, inventaram uma prótese para paraplégicos
carentes. Tal foi o sucesso da invenção que ambos receberam o merecimento da
medalha de comprometimento científico humanitário e social concedido pela ONU.