UM CONTO SEM FIM PARTE II

Quando a noite saía de cena e o dia dava suas primeiras pinceladas com tintas acrílica cítricas no horizonte os garçons levantavam as mesas e cadeiras sinalizando o final da brincadeira. A disposição dos amantes insaciáveis pelo viver parecia não ter fim, destoava do semblante do garçom que exausto ansiava em terminar os últimos retoques do seu oficio para se mandar pra casa. Certamente era pai de família como indicava a grossa aliança no dedo anular esquerdo. 

Será que estes dois não se tocam, não! Já levantei todas as cadeiras só falta a deles. Paga logo está conta que eu preciso ir embora.

Como em uma transmissão de pensamento os amantes levantaram a mão sinalizando para fechar a conta. Mais que rapidamente providenciou os cálculos com o caixa. Desceram os degraus abraçados e cambaleantes, ele falava alguma coisa próximo ao ouvido dela que gargalhava desinibidamente.

 Passou a retirar os copos e limpar a mesa enquanto pensamentos desfilavam em sua cabeça como em uma parada de 7 de setembro:

Enquanto todos se divertem, a expensas dos meus esforços e servidão, minha família passa mais um ano sem minha presença de pai e esposo. Mas é por uma nobre causa: sustento. Isso é o que me alivia desta dura jornada noturna.

Alegrava-se em pensar que a festança hoje perdida seria recuperada logo na semana seguinte onde já havia combinado um merecido passeio e descanso junto ao seu filho e esposa no rancho que tanto gostavam, desta vez, poderiam levar até seus estimados amigos, pois o ganho destes dias de festa haviam lhe rendido fartas economias que cobririam as despesas ordinárias e sobraria uma boa quantia para divertirem-se. A família reunida, sem hora para acordar, nem dormir, apenas desfrutando dos momentos saborosos de união e diversão era a felicidade maior que invadia seu coração preenchendo todo espaço expulsando qualquer infelicidade que teimasse em habitar.

Tão logo acabara de recolher os últimos copos se amontoara no quartinho dos fundos com outros garçons despindo-se das vestes de trabalho. Zarpara com gosto de trabalho cumprido e dirigia sob efeito entorpecente dos dias trocados pelas noites e vice-versa que o forçava ser mais cauteloso no traçado do seu rumo. O plano era passar na cunhada para pegar seu filho, depois pegar a esposa na garagem onde, pelo horário, devia chegar a pouco. Sua mulher era motorista de ônibus interestadual e como ele trabalhava em horários alternados. Muitas eram as viagens durante a noite voltando para casa somente pela manhã.

O filho deles ficava com a cunhada, irmã da mulher, um amor de pessoa, alma caridosa que não esperava recompensas materiais, nem mesmo espirituais.  Daquelas pessoas passivas, mas não ausentes ou omissas, pacífica talvez seja a palavra correta. O fato de admitir alguma vantagem em detrimento do outro já lhe causava mal estar e não que estivesse realmente prejudicando alguém, mas o fato da sua íntima avaliação achar que perturba o outro já era causa para modificar a situação ainda que desvantajosa para si. Imperava a idéia da não confusão. Um medo tão grande de tirar as coisas da ordem que preferia suportar algum encargo em prol de manter a estabilidade emocional entre as partes. Daquelas pessoas que se anulam pelos outros, mas, no caso dela, a complexidade era maior, não se tratava de uma anulação baseada na inferioridade, mas uma ação para assimilar o choque com a certeza de agüentar e refletir uma onda menos destruidora. Funcionava como um air-bag do impacto. Pessoa altruísta na essência.

O menino, uma criança inteligente e cheia de energia tinha uma raríssima doença genética. Sofria da Síndrome de Ekman-Lobstein ou osteogênese imperfeita como é conhecida. Um menino com animo para correr, brincar, mas seus ossos pareciam vidro. Quebravam-se ao menor impacto. Às vezes um movimento mais acentuado dos membros, como normalmente ocorre quando crianças correm e se esquivam umas das outras, já era suficiente para lhe trazer uma fratura. Era um defeito extremamente limitante numa alma sem limites. Todos tinham uma preocupação especialíssima com o garoto e ele em um misto de saber e não querer saber da sua condição às vezes exagerava nas brincadeiras, além da normalidade contida das crianças da sua idade. Outras vezes, por sentir na pele a dor e desconforto de viver engessado maneirava nas atitudes, apesar de não ser recorrente.

Quando o pai apanhou o menino na cunhada já havia pegado a mãe, então se demoraram o tempo suficiente de jogar conversa fora; ultrapassar o limite da superfície para adentrar em profundezas da intimidade e conversar sobre assuntos que, pelo alcance subterrâneo interno da particularidade, se tornavam triviais. Após as saborosas trocas de complementos despediram-se e, mais uma vez, confirmaram a presença dela no rancho que ocorreria dali alguns dias.

Na saída do prédio em direção ao carro foram abordados por um mendigo sujo e mal-cheiroso que vinha se desculpando antes mesmo de alcançá-los e implorava com retórica amansadora e disfuncional a quimera de algum dinheiro.

Para livrar-se logo daquela situação insuportável o pai enfiou a mão no bolso e deu algumas moedas nas mãos daquele homem que olhou profundamente agradecido pela esmola.


Pegaram o carro e zarparam para dias melhores.