UM CONTO SEM FIM PARTE III

Aquele mendigo caminhou despretensiosamente para longe deles. Não tinha qualquer compromisso, mas tinha uma vontade que fervia em suas veias e na sua alma de maneira que lhe mantinha vivo agora e sempre.

Esta existência é realmente dicotômica.

O amor nasce do medo, a desconstrução é matéria-prima da construção.

O forte nasce do fraco, os alijados são no fundo aleijados.

A vida surge da morte e vice-versa.

O concebível geralmente é a perspectiva do inconcebível.

Assim são as coisas, diametralmente opostas, porém com tal sincronia que forma-se o fluxo. Contingente de gente caminhando cada qual em uma estrada diferente, mas que desemboca no mesmo lugar.

O coração jamais para, a não ser, quando seu sopro de vida é raptado para algum lugar além da vida, levando todo o conglomerado do corpo para depois da morte. Muitos crêem que ainda assim não morremos, porque a matriz da via é indestrutível.

O coração, na excelência da sua sabedoria, leva o homem para lugares inimagináveis.

Quando ele para de bater tudo morre, para reviver a incógnita. Na carne inerte sobra apenas o mistério.

Em todas estas coisas pensava aquele mendigo enquanto caminhava.

Assim começa minha estória.

Começa nas minhas primeiras lembranças na rua. A primeira noite que senti o frio cortar minha pele. Estava na rua pouco tempo, dormindo em lugares que, pelo menos naquela noite, pareciam seguros. Era inverno e apesar de toda pinga que minha alma sorvia dando coragem para continuar caminhando pelas estradas e ruas do destino incerto, sempre com a precaução de dormir num lugar que poderia acordar vivo na manhã seguinte, aquela noite estava arrepiante.

Tinha bebido duas barrigudinhas e cheirado uma rasteirinha de pó conseguido com um nóia andarilho. Ainda assim o frio penetrava minha pele, sem dar trégua. Fazia tremer meus ossos. Me lembrava como se fosse hoje, mas ainda bem que eram apenas lembranças.

Muito diferente de hoje que ta um calor dos infernos. Verãozam de suar as tripas. Melhor assim - pensei. Prefiro mil vezes as baratas andando em cima de mim – muitas vezes nem mesmo sinto – do que o frio de congelar.

Caminhava e estas coisas todas viajavam na minha cabeça, então foquei: tenho que arrumar uma pinga mais forte, quem sabe uma ponta de maconha pra dormir tranqüilo. Ali, não podia ficar. Vou caminhar até a rua Guaitanazes, lá posso conseguir estas coisas todas, mesmo porque tenho quarenta no bolso e tô abeça pra negociar. Minha dinheirama tá no jeito pra passar uma boa noite.

Cheguei lá, e tinhas uns caras que são moradores de rua a muito tempo, mas, também, tinha uns caras nóia, chapadão, conversando com uns crentes, gente da Igreja que tentava levar todos nós pra conversam deles.

Decidi sair de lado e caminhar até a rua de baixo onde tem uma boca só de pó. Cheguei ali e com o dono do saco o jogo foi rápido: peguei três pinos de 10 que dava uma luz boa, pra enfrentar a longa noite de frio.

Aquela biqueira era boa, vendia uma poeira de qualidade, não era igual aquele cimento que vendiam nos outros becos, daqueles que, no dia seguinte, não dava pra levantar a cabeça de tão pesada, parecia chumbada no chão de tanto concreto no cérebro. Essa não. Era uma cocaína que deixava legal sem muitas conseqüências depois.

Guardei um pino num pano agarrado na virilha porque eu não tinha bolso. Alias, até tinha mas tava tão furado que não podia guardar nada. Algumas vezes, muito louco, coloquei algo valioso ali e, certamente, no dia seguinte, para minha decepção, só encontrava o buraco negro que vazava pelas minhas pernas. Fiquei esperto e acertei um mocózinho de pano amarrado que, mesmo muito doidão, não deixava de colocar ali o que era de valor.

Aquele pino guardado ficaria pra depois. Quem sabe ia misturar com água e injetar aquela merda. Os outro dois pinos segurei não mão ansioso em encontrar o lugar certo para usar.

Por agora só pensava em descer a rua até a concentração. Lá ficava um bando de nóia que sempre tinha uma aguardente pra dividir. Com meu pó seria ideal.

Logo que cheguei avistei grupo de três onde no meio sentava um cara barbudo e cabeludo, já meio coroa e também tinha o olho puxado, parecia um japonês saído daqueles filmes de kung-fú onde tem o mestre esquisitão, mas sábio e que não se importa com coisas materiais. Vive só do seu pensamento, largadão.

Ele falava calmo, pausadamente, com propriedade, pois um deles escutava atento. O outro entretido com uma lata manejava pra lá e pra cá, como se não estivesse dando importância ao falatório, mas estava, na verdade, atento e compenetrado.

Vou sentar ali – pensei.

Cheguei na humildade e com educação:

- Será que posso me ajuntar aqui?!.

Ninguém falou nada. O cara japonês continuava a conversar.

Isto era sinal suficiente que aquele grupo havia me aceitado.

Logo percebi uma demência sedutora naquele japonês barbudo e cabeludo que não parava de filosofar coisas sem qualquer sentido e outras profundamente observadas. O cara da lata olhava o chão, sua mão, a lata. Parecia estar em outra dimensão rodando a lata entre os dedos e cutucando a orelha intermitentemente.

O outro prestava atenção com sinceridade. Olhava para o japonês como um aluno ouve um professor.

O Japa contava que era letrado, se formou em engenharia e viajou o mundo inteiro construindo pontes. Aquela estória toda parecia uma grande mentira. Acontece que ele começou a dar detalhes das cidades por onde passou, algumas dizia ter morado por um breve período. Falava de forma articulada e seu enredo era tão rico em detalhes e lembranças que realmente convencia.

Se virou pra mim e lascou a pergunta:

- responde para mim – fixando seus pequenos e puxados olhos nos meus – por que estou nesta merda?

Dei de ombros. Ele mesmo começou a responder:

- porque não sou escravo. E sabe por que não sou escravo? Porque sou vagabundo.

Nós três viramos nossa atenção para ele, confusos, esperando a continuação daquilo que certamente continuaria explanar.

- estes porcos capitalistas – continuou incisivo – aboliram a escravidão só que criaram uma ainda pior: o assalariado. É mermão, porque antes quando se era escravo você ralava, mas à noite, na senzala, bem ou mal, tinha comida e água de graça. Hoje, você rala o dia todo e não tem nem o que comer. O senhorio feudal de hoje explora até suas entranhas, porque te faz trabalhar o dia inteiro só pra você e sua família conseguir um dinheiro pra comer. O que ele te dá em salário ele te tira depois. Você não tem escolha, ou você vende seu esforço humano pro Senhor ou você e sua família morre de fome. Antigamente os escravos, ao menos, eram explorados na força de trabalho, mas não morriam de fome, a comida era grátis. O senhor feudal de hoje cobra até seu sustento. Por isso sou vagabundo. Não dou chance para estes porcos capitalistas subversivos me dominarem. Não faço parte dos seus esquemas escravistas.

- você aí retardado – estava se referindo ao que ficava mexendo com a lata, mas que agora dava sua atenção a ele, sem responder ficou só olhando, e ele continuou – é alienadão assim por quê? Por causa de tanta droga no cérebro. E quem te deu a droga? Foi o imbecil ali da esquina?! Não. Foram os capitalistas safados que se não te aprisiona de um lado te escraviza de outro. De um jeito ou de outro vão te sugar e arrancar seu dinheiro e força pra eles continuarem...


- Ceis são muito retardados, não sabem nada disso. Eu não, eu sei. Deles só uso essa merda da pinga, mesmo assim não sou escravo, a hora que eu quiser saio fora disso tudo, me mando, não sou escravo. – ao tempo em que ia falando se levantou e foi andando a ermo, pra longe da gente.