KAHLO, MAGDALENA CARMEN FRIEDA Y CALDERÓN
A maioria das pessoas tem um caso surpreendente para contar. Algo
inesperado que de alguma maneira afeta a razoável normalidade e tranqüilidade
da vida, tornando aquele instante uma lembrança inesquecível. Eu sou uma destas
pessoas, e o fato que marcou minha vida ocorreu num sábado a noite do mês de dezembro
do ano de 1989.
Aquilo realmente foi o divisor de águas da minha vida, pois foi o liame de eu hoje estar relatando isto ou não. minha vida poderia ter acabado naquele momento, mas Ele confiou no que eu disse. isto fez a diferença. Confiança.
Naquela época tinha dezessete anos. Eram por volta das três horas
da manhã quando deixei a namorada em casa e, como de costume, caminhava uns
quatro quilômetros de volta para minha residência.
Ao dobrar uma esquina, quase no meio da quadra, três jovens
sentados no meio fio conversavam euforicamente abusando de gírias que mais
parecia um dialeto pouco compreensível.
Dei-me conta de como aquele bairro era violento. Era bastante
populoso, sendo que a maior parte da população era humilde e honesta, pessoas
que trabalhavam e preservavam integro o caráter, mas, uma pequena parcela de
desonrados preferiam viver na criminalidade, de maneira que esta minoria, através
da violência e delinquência desmedida, infligia a política do terror à maioria.
Pessoas como aquelas, quase brancos ou quase negros, sempre no perímetro da ilegalidade sentiam-se poderosos, ao mesmo tempo que eram responsáveis pelo infeliz estigma de pessoas como eu: “pardo,
pobre e ladrão“. Sentia pena deles, como sentia pena de mim mesmo. Mas minha estima impedia que seguisse o mesmo caminho que o deles, apesar de andar com os mesmos chinelos surrados na mesma rua esburacada.
Aquele momento não era o mais apropriado para pensar nestas
coisas, então parei em frente aos garotos - dois deles estudaram comigo no primário - pedi o isqueiro para acender meu cigarro.
Naquela época eu ainda tinha o péssimo hábito de fumar e, naquelas circunstâncias
me pareceu prudente não mostrar intimidação e ao mesmo tempo demonstrar
naturalidade com gente como a gente.
Foi quando dois carros aproximaram-se em alta velocidade e frearam
bruscamente na nossa frente. Cinco homens encapuzados desceram dos veículos com
pistolas automáticas em punho.
- Todo mundo de joelhos; a casa caiu; o bicho vai pega - gritavam.
- Aquele ali eu vi pulando o muro da minha loja - disse um deles
apontando para mim.
Em um momento de desespero levantei-me e segurei fortemente os braços
daquele que parecia mais enfurecido. Seus músculos retesados demonstravam sua fúria
e disposição para matar. Olhei profundamente nos olhos por detrás daquele capuz
preto e falei: seja lá o que for eu não fiz nada, sou inocente.
Por alguns segundos manteve seus olhos fixo nos meus e, de
repente, por uma razão que nunca entendi, retirou seu capuz e proferiu a frase
que eu tanto esperava: Some daqui moleque e esquece o que viu.
Sem hesitar corri sem olhar para trás. Minhas pernas trêmulas
pareciam não agüentar a missão de permanecer correndo, mas não parei. Pelas costas ouvi um
deles dizer: - Ele viu seu rosto. Vai deixar ir embora?
- Deixa ele ir, ele é gente de bem - retrucou o homem.
No dia seguinte, estampado na primeira pagina policial do jornal
estava a foto dos três corpos dos jovens da noite anterior. A matéria era sobre
execução sumária, mas as informações eram desencontradas, algumas falavam em
acerto de contas entre traficantes, outras sobre chacina policial.
O fato é que eles estavam mortos; eu vivo e seguro na minha casa.
Tudo graças a um desconhecido que entendeu que eu dizia a verdade. Jamais
revelei a ninguém sobre o ocorrido, permaneceu comigo em segredo.
Os anos se passaram, me formei em Direito, constitui família e
trabalhava em um escritório de advocacia com outros dois advogados.
Nunca havia postulado na área criminal, até que entra uma garota
afável mas nitidamente desesperada para uma consulta jurídica. Contou que seu
noivo estava preso e ela disposta a pagar o que fosse necessário para libertá-lo.
Por algum motivo inexplicável resolvi cuidar do caso. Conversei
com o rapaz que estava detido na delegacia, em flagrante delito. Havia roubado um automóvel e foi parado numa blitz policial. Sua ficha criminal acumulava alguns antecedentes menos graves, como porte de entorpecentes para uso próprio.
Os dias se seguiram e cada vez mais conhecia o rapaz, seu nome era
Jonas. Mostrou arrependimento e prometeu nunca mais usar drogas
tampouco envolver-se com criminalidade. Apesar de tudo tinha um caráter na maneira de agir e julgar as situações cotidianas que as "pessoas de bem" não tinham. Era inteligente e honesto com seus desejos, de forma que não enganava ninguém com falsas atitudes.
Olhei bem fundo nos seus olhos e
acreditei na pessoa daquele ser humano.
Trabalhei arduamente no caso e consegui reduzir sua pena a uma
quantidade tão ínfima que o juiz concedeu substituição por trabalhos à
comunidade. Além disso, lhe arrumei um emprego como vendedor na loja de carros
de um amigo.
Realmente, Jonas confirmou minhas expectativas, pois além de nunca
mais envolver-se com drogas ou crime, ainda mostrou-se um excelente vendedor de
carros, sendo importante para os negócios pois identificava facilmente veículos
adulterados ou com problemas. Tornou-se um dos melhores e convincentes vendedores.
Certo dia convidou-me para almoçar em sua casa, pois seu pai
queria muito me conhecer, já que o orgulho que sentia pelo filho que vivia uma
vida honesta era o mesmo orgulho que sentia por mim que ofereci esta
possibilidade.
Diante de tantas honrarias, aceitei. Me lembro como se fosse hoje.
Estava sentado no sofá da sala quando o pai de Jonas - um militar aposentado
que atualmente fazia um trabalho social com meninos de rua na congregação onde
era pastor -, entrou pela porta da cozinha e veio ao meu encontro
cumprimentar-me com bastante felicidade. Jamais esqueceria aquele rosto. Os
olhos que outrora havia fitado profundamente. Os mesmos olhos daquele rosto que
em uma noite retirou o capuz preto.
Certamente ele não me reconheceu, mas eu jamais esqueci.