Tenho uma estória para contar daquelas que sou obrigado advertir - igual a tempos passados - "que qualquer semelhança com fatos reias é mera coincidência". Quem tem quarenta anos ou mais sabe exatamente do que estou falando, pois toda boa novela brasileira apresentava no início de cada capítulo tais dizeres. Digo isto, não por acaso, mas por ser uma estória tão comum que certamente qualquer pessoa conhece, conheceu ou vive fatos semelhantes. Porém está estória não é de ninguém em particular mas de todos em particular, já que cada peculiaridade, felicidade, amontoado de coisas, coisas sem medida; aquelas que penetram as entranhas, passam despercebidas; se ocilam, revitalecem, transbordam; voltam a se apaziguar. Com toda certeza de afirmar ebulem em guerras, farpas e paz EM VOCÊ, EM AMBOS, EM NÓS.
Era um jovem amante que amava a vida, a felicidade descomplicada, aglomerava amigos, contava piada, vivia a fúria da adrenalina, dava tudo e para tudo a sensação no inesperado, uma emoção forte e rápida, pulava de bang-jump como quem quer cair de cabeça no inexplorado com a paixão da vontade verdadeira em descobrir o que está por trás das coisas, sedento com garras de aço em arrancar pedaços do medo até transformar todo temor em parque de diversões. Amava a si como ninguém jamais amou e disso era todo o ardor; se lançava ao desconhecido como se tudo e todos fossem amigos; tinha pura sensibilidade para distinguir cada som, cada timbre, cada nota afiada da corda da guitarra, cada ruído em particular da música que tocava seu espírito embebido em êxtase de viver a exuberância que Deus concebeu e iluminou seu ser.
As mulheres....ah, as mulheres...Amava todas como se fossem as únicas e as últimas. Fazia de cada uma especial, o amor maior e melhor entre todas e tudo no mundo; acariciava seus cabelos, beijava seus lábios, penetrava suas bocas entre línguas e salivas tão contundentes que o tempo movia-se em câmera lenta; tratava da sua pela macia, do corpo da fêmea com a força necessária e firme como um macho que embebido pelo desejo conduz o coito com violência necessária para penetrar o prazer da mulher que se encharca como oásis a ser sorvido com calma e sabor. Não prometia expectativas infinitas de convívio, mas se bastavam em recíprocos desejos e alívios; sexo e gozo; felicidade e segurança. Mas não era só isso, também mantinha por aquelas a paixão verdadeira, onde horas de distância significavam momentos aflitos de saudades e quando se encontravam se fundiam em palavras, emoções, carícias de modo que o dia passava em um segundo e mesmo no fim do dia os corpos entrelaçados como um não queriam se separar porque o tempo não poderia ser finito diante de tão incalculável querer.
Discutia os assuntos mais variados sem ser repetitivo, defendia com brios de aço sua percepção do mundo; concebia uma idéia a cada segundo; tinha uma perspectiva nova e diferente de tudo que lhe apresentavam; diante dos seus olhos nada passava desapercebido porque tudo era luz e brilho capaz de entrar em combustão pela mínima fagulha da visão; acreditava que podia fazer a diferença, vislumbrava um futuro glorioso sem limites onde nada e ninguém poderia segurá-lo, porque suas estradas eram todas, os possíveis e impossíveis caminhos do mundo sem fronteiras e com as portas escancaradas para ser descoberto e explorado.
O corpo...Ó corpo então era uma máquina em constante ebulição; os músculos não se cabiam dentro de si, explodiam em fúria e força, tinha a destreza de um felino; a velocidade de um predador; a resistência de um maratonista; era belo, esbelto, seco, conciso, uma arma letal de capacidade sem igual; desferia socos e pontapés com mesma velocidade e felicidade quanto saltava um alto obstáculo ou se engalfinhava como uma menina qualquer sob frio intenso de um qualquer descampado ermo.
Os Tempos mordazes em prosseguir chegaram e com eles trouxeram responsabilidades e família; trabalho e cercanias; mãos duras e espírito calejado donde se decidiu cindir e decidir o que seria apenas sonho daquilo que deveria ser o que era, considerado aquilo mesmo como real, a vida assim: morna.
Mas, ainda tudo era interessante, um brilho lúcido num olhar firme de convicções se criavam raízes dispunham de maneira ordenada e eficiente as maneiras pelas quais os convites de casamentos se confeccionariam; as flores da igreja; a igreja e o padre; toda família reunida e unida em torno de um, mais um, agora sonho em comum. Casou-se e com o casamento as responsabilidades e comprometimentos, nada poderia tardar e amalucar. Haveria de construir casa de cômodos agradáveis e compatíveis. Emprego seguro, de dias confortáveis; onde antes era fogo e desorientação, hoje era pacato, ambição.
Os vindouros anos seguiram...Outonos, flores caíram sob o olhar apaixonado em milhares de planos ainda por se concretizar; Primavera se contentaram e se divertiram com trocas contundentes e sólidas de almas que se conheciam sobremaneira na completude do aconchego de um Hotel deslumbrante numa região deslumbrante de algumas viagens inesquecíveis; Verão algum desentendimento sanável que logo era prazer e alegria de fato em arder com pele e Sol; Inverno...ora inverno, se uniram em corpos aquecidos e de lá nasceram os filhos.
Novos tempos, novos ares. O tempo trás cada vez mais distância daquilo que deixamos atrás. Filhos, pai e mãe de família, essa era, era outra vida. Ajuizar-se ao máximo para constituir os limites necessários de uma boa vida tranquila e confiável. Os empregos, ainda que chatos, eram os únicos que de fato davam sentido de espaço e preservava a hombridade entre homens e mulheres que se dispunham em não arriscar e esquecer o passado. Aquele longínquo tempo abestalhado quando jovem era apenas um lapso sem consistência no qual teima mas não tarda em desacreditar que não vale a pena.
Dai todo aquele sonho que hoje se sabe uma besteira, resta a bebedeira para dar algum sentido nas absolutas proposições filosóficas que explicam de forma inequívoca o proceder de um adulto sério, comprometido com as verdades soberanas que estruturam firmes e certos passos compassados numa atual avenida de areia movediça.
Com os anos depositado no lombo, a infelicidade depositada na alma não se conformava em ter tudo que sonhara: casa boa, carro bom, emprego razoável, família linda, principalmente pelos maravilhosos filhos; ainda assim tinha certeza de lhe faltar algo, que não sabia exatamente...Por agora restava momentos fugazes de cheirar uma carreira de cocaína e embebedar-se em meio a frívolas conversas entre colegas para depois, ao adentrar a casa, ouvir a ladainha cansativa da esposa que a vários dias não mais metia. Virou mãe, sagrada mãe com hora devidamente regrada e regulada para dar a buceta.
Foi obrigado a ensurdecer-se e esquecer-se de si mesmo. Esquecer do seu passado. Já não havia os bons e antigos amigos; a música que tocava o espírito; uma ideia revolucionária ou animadora; uma novidade que surpreendesse; o simples viver de supetão; o sexo sem burocracia; desejo, tesão. Ficou tudo proibido, guardado e esquecido no fundo de uma caixa empoeirada largada em cima do sótão bem lacrado.
- QUE FIZ DA MINHA VIDA, QUE PESSOA ME TORNEI ?
- QUE FIZ DA MINHA VIDA, QUE PESSOA ME TORNEI ?
Tudo aquilo passou por sua cabeça em instantes de segundo. Um velho de oitenta e poucos anos vestindo um pijama azul de pequenas bolinhas brancas, calçando alpargatas marrons, de cócoras no parapeito do décimo quinto andar, olhando lá embaixo para os pequeninos automóveis em movimento, pronto para se lançar, espera...logo se esquece. "Mas que diabos estou fazendo aqui?! Como vim parar aqui?! - se pergunta atordoado. Com dificuldade sai do parapeito, retorna a sua casa, onde não mais reside sua esposa, quadros evidenciam filhos com suas próprias famílias que a esta altura estão longe; os cômodos vazios, a sala na penumbra, vai até sua cozinha, esquenta a água, faz um chá, se senta na poltrona assistindo desinteressado um programa qualquer da televisão.