HELEN LEVITT
Cruzou as mãos atrás da cabeça,
escorou-se no muro, afastou os pés, retesou todos os músculos tentando absorver
a violência com que as mãos lhe revistavam.
O da direita apontava o cano da pistola na fonte da cabeça. O da
esquerda empunhando uma doze repetia perguntas como: qual seu nome? Nome do
pai? Nome da mãe? Da onde vem, pra onde vai...repetia de frente para trás de
trás para frente na esperança de num deslize apontar a confusão e nos
arregaçar.
O parcero do lado, se cagando de medo
só conseguia repetir que era trabalhador. Cada palavra “trabalhador” era
acompanhada de um tapa na orelha. Batia forte com a mão aberta só pra humilhar.
O da boina enfiou a mão no bolso do
parceiro e arrancou um baseado e uns trocados amassados.
Gritou alto e em bom tom perto do
ouvido: GOSTA DE ESTERCO NEGUINHO?!
Ele era tão ou mais escuro a quem
ofendia a raça.
Virado de frente para cara do cara de
boina teve seu maxilar prensado por dedos que apertavam como morsa. Abriu a boca
involuntariamente e o da boina enfiou goela abaixo o cigarro de maconha.
NÃO VOMITA NÃO! SENÃO VAI COMER O
VOMITO...
Uma mulher que caminhava na mesma
calçada não tardou em atravessar para o outro lado, apertando o passo para sair
o mais rápido possível daquele cenário.
De cabeça baixa, com as mãos para
trás pensava na penumbra que era aquele lugar ermo, vazio. A única testemunha
se apressava em ir embora para nada assistir.
Será que é agora que eu morro –
pensava.
Sei que nunca fui um filho exemplar.
Entre os cinco irmãos sempre fui quem deu maiores problemas. Minha tia que
vendia o corpo em troca de qualquer promessa sempre dizia que eu era
espevitado. Minha mãe falava que eu era faceiro e ligeiro, se admirava disso,
principalmente, quando nos reuníamos numa roda de samba num boteco regado a
cerveja e pinga. Dizia que eu era inteligente e um dia lhe proporcionaria
orgulho.
Não tinha muita certeza quem era meu
pai, apesar dela apontar o João. Na verdade, não queria que fosse ele. Um
bêbado violento que vivia bolinando a molecada do bairro. Preferia que fosse o
Jailson, me tratava com carinho, respeito e, ainda, me ensinava os dribles da
bola.
Na escola era bom. Não gostava de
estudar, mas acertava tudo em matemática. Gostava mesmo da quadra de futebol, lá
me sentia Rei. A molecada toda respeitava e fazia questão de me escolher pro
time.
Quando adolescente me meti em muita
confusão, principalmente, depois que minha mãe foi assassinada pelo namorado
ciumento que fazia um mês de liberdade.
A morte da mamãe foi um escalpo.
Cravou-se uma estaca no meu coração e transformou enegrecido, mais do que já
era. Pirei. Joguei tudo pro alto. Na verdade nada tinha, então enterrei o que
restava de alguma lucidez.
Resolvi, que a partir daquele
momento, mataria o mundo na unha. Um bicho feroz e cruel como a vida deveria
ser domada através de muita coragem e força. Fiquei destemido, enfrentando tudo
e qualquer um na bala e na faca. Mas, não cheguei longe...
Enquadraram-me na tal de Fundação
Casa e, depois dela, na tal Penitenciária. Perdi preciosos dias da minha vida,
por outro lado, amadureci o lado safô da humanidade. Diante de tanta escuridão
semeei esperança no coração. Após cinco anos ganhei liberdade.
Queria, no fundo da minha alma,
trabalhar e viver uma vida simples e normal. Queria poder andar com a cabeça
erguida, ter meu dinheiro honesto, minha diversão saudável. Mas a sociedade
fazia questão de dizer o meu lugar. Colocar-me abaixo de qualquer oportunidade.
Ceifar meu prazer de ser livre e impor minha condição de preso, preto, pobre.
Mas resisti. Sempre trabalhei,
recebendo mixaria de salário, me divertindo muito, com muito pouco...
Até que aqui estou, sem certeza de
que a vida irá continuar...
De supetão o cara da boina mandou um
direto bem no meio do meu nariz: VOCÊ É MUDO RETARDADO?!
Curvei as pernas e cai de joelhos.
Levei a mão estancando o sangue que jorrou. A melhor sensação que pude
experimentar: o sangue quente em meus dedos e a visão deles entrando na viatura
e partindo, pra bem longe...
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