UM CONTO DE NATAL

SUSAN MEISELAS


Tudo girava ao redor.

Eu orbitava flutuante, tudo tão presente, ao mesmo tempo distante.

Luzes, sirenes, o cheiro forte da gasolina, asfalto. Bombeiros me atando, imobilizando - muito as pressas -  colocaram-me na maca que cavalgava trepidante.

Tinha consciência da gravidade da situação, mas distante...

Uma paz tomou conta do meu ser que parecia flutuar imparcial pela periferia serena do caos.

Enquanto a ambulância disparava na direção do meu destino incerto, pensava: Aonde perdi o ponto?! Em que momento deixei escapar o controle?! Quando foi que decepcionei a mim mesmo?!

Já não era a primeira vez. Cedo ou tarde a gente reencontra nossos demônios. Eles fogem das celas do subterrâneo e ao encontro temos que encarar. Não há como escapar...Essa hora era de encontro...

Meus pés doíam bastante, sabia que não era por causa do barro úmido, mesmo porque era muito confortável, alguma coisa tinha penetrado minha sola. As lagrimas escorreram meus olhos ainda que eu quisesse conter. Meu pai sempre atento, me agarrou e identificou o problema: cacos de vidro.

Ah! Que lástima! Tive que suportar uma dor imensa enquanto minha mãe retirava lasca por lasca dos vidros.

Minha vida era feliz, tinha uma mãe e pai que me amavam, me protegiam, me defendiam sobremaneira do mundo inóspito.

Um dia quis seguir com meus próprios pés, curioso quis enfrentar o mundo como Ele era. Meus pais deram tudo: amor, educação, formação. Só não me deram coragem. Esta eu deveria conquistar por mim mesmo.

Meti os pés pelas mãos na ânsia de provar que não era covarde.

Ainda adolescente escolhi as companhias mais tortas e erradas que pude encontrar. Queria num devaneio ficcional da coragem experimentar tantas dores que pudesse suportar, tantas drogas que pudesse consumir, tantas depressões que conseguisse sentir.

Nada encontrei. Nada Não! Encontrei sim: meu amigo, meu mentor, meu irmão...

Pretinho, humilde, sagaz, inteligente, era o lado avesso de mim mesmo na solidão, na busca...

Sentíamos que erámos importantes, que fazíamos a diferença diante de um mundo indiferente, nem que a diferença fosse apenas nossa.  E como era nossa. 

O pretinho tinha uma mãe casada com um detento. Tinha domingo que era preso só para encontrar com o pai. Na semana seguinte suas recordações não eram boas, dizia ser um lugar muito triste, carregado...

A gente queria fazer a coisa certa, apesar de sempre estar fazendo a coisa errada.

Determinado ponto da vida fui para Faculdade. O pretinho não sei, caiu no mundo.

Na faculdade aprendia técnicas para enfrentar o mundo com coragem. Eu tinha muito medo de nada daquilo dar certo. Os Mestres, consolidados em seus ternos responsáveis, nos mostravam um único caminho para vencer. Deixavam claro que o corajoso, o vencedor, o destemido deveria conhecer profundamente aquelas regras, dominar a técnica, amoldar-se perfeitamente nos limites do sucesso.

Todos nós, na classe, sentíamos calafrios. E se eu não conseguir aprimorar a técnica?! Tive a coragem de admitir o medo do fracasso. Me formei e fracassei.  

Novamente, para não encarar, simplesmente ignorei. Para sustentar meus devaneios singelos, meus quereres humildes, minha noção de insignificância arrumei um emprego chato, mediano, trabalhoso, exigente e que ganhava muito mal.

De toda aquela minha vida hipócrita tinha uma única coisa que fazia Todo sentido: meu filho e consequentemente minha esposa.

Minha família era o porto seguro de um barco capenga onde me sentia um transatlântico. Sentia com coragem de desbravar o Universo, ainda que meu medo dissesse para calar a boca e ficar quieto no meu canto.

Então...quando tudo caminhava normalmente, em véspera de Natal, andando pela rua encontrei Pretinho.

Não mudara nada, o mesmo de antes. Conversamos, bebemos, rimos. Ele contou que havia pagado pena: sete anos, por roubo. Se orgulhava de ser destemido, corajoso, experiente, respeitado. Para mim era o mesmo Pretinho amedrontado de sempre. Seus devaneios de coragem não me seduziam, nem enganavam. Eu estava por demais calejado na derrota para me impressionar com malabarismos circenses.

Mas não haveria de ser nada, porque o gostoso era estar ali, naquele momento, relembrando e curtindo o passado. Percebi o quanto o Pretinho não cresceu. Seu medo foi tão estupendamente maior que o meu que resolveu se enclausurar, como se isto lhe legitimasse a se atribuir coragem.

Era um ser acuado, com medo. Resolvemos, então, dar um sentido diferente aquilo Tudo. Fomos buscar cocaína.

Cheiramos, bebemos e corremos da covardia. Acelerei o automóvel até aonde a coragem deixou para trás o medo que sentia. Aceleramos imprudentemente a fuga da covardia. Acertamos em cheio o carro em sentido perpendicular ao ultrapassar um semáforo vermelho.

Tudo girava ao redor. Depois de três dias na UTI, renasci.

Nasci novamente com a certeza absoluta que a coragem é viver cada dia uma vida simples e ileso.

Um anjo ao meu lado, repousou as mãos sobre mim e disse: siga tranquilamente. Derrote seus demônios, porque a coragem está no seu coração e a força no seu pensamento. Viva a vida incólume. Sempre estarei ao seu lado.