A VINGANÇA - PARTE 1

ALEKSANDRA WALISZEWSKA


Na rua um alvoroço geral. Dezenas de giroflex iluminavam toda parte. Havia carro da polícia aos montes – civil e militar. Até onde meus sentidos permitiram - pois sentia-me confuso, atordoado - contei três ambulâncias. Eu sentado no meio fio da calçada da Rua das Azaléas não conseguia me levantar. Sentia o peso de trezentos quilos sobre meus ombros. Não conseguia mexer um músculo sequer. Sensação horrível, estava sentado no cimento da calçada sem sentir o menor contato, parecia tudo adormecido. As duas extremidades da rua, do lado direito e esquerdo, policiais faziam a contenção. Esticaram uma faixa amarela de um poste a outro do passeio delimitando a entrada das pessoas. Dos dois lados da rua curiosos se amontoavam. Alguns repórteres atravessam o cerco e entrevistavam os oficiais. Comprimi os olhos na tentativa de clarear a visão e os fixei na casa em frente, onde tudo acontecia. Entre e sai de pessoas. O rabecão do IML parado na porta e alguns peritos conversando.

Só então me dei conta: AQUELA ERA MIINHA CASA!

Um calor subiu da ponta do dedo dos meus pés até a cabeça numa velocidade que inflamou meu espírito. Então, tive a compreensão do que estava acontecendo. Levantei-me de súbito. Agora eu flutuava alguns centímetros do solo. Me projetei em disparada para dentro da casa. Tudo era muito fresco, parecia ter acabado de acontecer. Logo no corredor central que dá acesso à sala principal fotógrafos da polícia registravam as poças de sangue que se estendiam até as escadarias para o andar superior.

Subi a escada correndo até o andar onde ficavam os quartos. O corredor se dividia em esquerda e direita. Hesitei para qual lado escolher, mas logo corri para esquerda onde ficava o quarto das crianças. Tinha o quarto da minha filha, de dezesseis anos e ao lado do meu filho, de apenas nove anos. Por alguns instantes fiquei parado temendo o que poderia encontrar.

Entrei primeiro no quarto do meu filho. Eu pressentia que iria me chocar, realmente foi o que aconteceu. Jogada no chão escorada a cama minha esposa tinha a cabeça pensa no colchão presa ao corpo apenas por uma porção de carne, pois haviam a degolado quase por completo. Estava de uma cor branca roxeada. Ao seu lado litros de sangue que escorreram do seu corpo. Bem próximo, meu filho tinha parte do corpo embaixo da cama, parte fora, como se tentasse desesperadamente se esconder em baixo da cama, porém antes que conseguisse teria sido surpreendido e alvejado por dezenas de tiros. Seu pequeno e delicado corpo estava perfurado de balas.

Àquela altura, a dor que que me afligia era indescritível, perpassava meu espírito como flechas inflamadas. Fui até o quarto da minha filha. Ela estava completamente nua deitada na cama. Marcas de violência por todo o corpo. Seus braços roxos evidenciavam que lutou com todas as forças contra algum animal que forçava a imobilização. Seu pescoço tinha nítidas marcas de estrangulamento. Era evidente que havia sido estuprada e asfixiada até a morte.

Os peritos colhiam amostras, policiais vasculhavam um cômodo e outro em busca de evidencias. Havia muitos policiais transitando na casa, todos estavam revoltados. Comentavam entre eles a crueldade que havia se passado naquele local. Zangados e claramente inconformados se comprometiam em achar os culpados por aquela atrocidade, atitudes que me traziam leve conforto.

- Você não merecia isto! – Era o falatório geral, apontando para mim

 – Sempre foi um Promotor dedicado, um profissional exemplar – todos me diziam.

Caminhei até a rua, aquela atmosfera era por demais pesada. Refleti brevemente sobre minha carreira de Promotor de Justiça e tentava encontrar entre as centenas de criminosos que fiz questão de colocar na cadeia algum rosto familiar que ligasse a esta chacina. Nenhum veio à memória.

- PRECISO VOLTAR AO TERREIRO, É ISTO...

De súbito, tudo clareou no meu pensamento. Sabia exatamente o que deveria fazer e o que tinha acontecido...

Tudo começou há dois dias, na sexta-feira à noite...

Era por volta das vinte e duas horas, eu e minha família retornávamos da pizzaria. Acionei o portão automático e adentrei com meu automóvel na garagem. Aciono novamente para fechar e olho pelo retrovisor. Antes que o portão se fechasse e eu pudesse ter qualquer reação, dois homens se esgueiram pelo espaço entreaberto do portão e se postam, cada um de cada lado, nas portas do carro. Antes que eles gritassem para sairmos, falei calmamente para minha família: vocês têm que ficarem calmos, vamos ser assaltados...

Saio do carro com muita cautela e digo: vocês podem levar o que quiserem...

Um negro com os olhos vidrados de tóxico e empunhando um Colt 45 na minha direção grita: CALA A BOCA VACILÃO – segurando no meu pescoço como se fosse me estrangular.

 Do outro lado, o rapaz de estatura baixa, cor parda, com muitas tatuagens nos dois braços, adverte com autoridade: - SEGURA A ONDA IRMÃO!

Carregam a gente para dentro da casa. A garagem tinha acesso lateral que desembocava na cozinha. O baixinho tatuado foi logo ordenando: -  abre a porta da frente que você tem visita. Me conduzia com violência comedida, logo percebi que se tratava do líder do bando.

Abro a porta principal e mais três homens entram. Um loiro de olhos claros é o primeiro a entrar, seguido de um menino que deveria ter uns dezesseis anos, com corte de cabelo estilizado e clareado artificialmente. Um outro rapaz franzino, de uma normalidade incomparável, com aparência de um cidadão qualquer que cruzamos no dia-a-dia das ruas. Pela minha experiência, todos estavam armados e municiados.

- QUE CASARÃO IRMÃO! Asseverou o moleque.

- A caminhada é o seguinte – dizia o líder – nós vai pegar tudo de valor, encher os dois carros na garagem e não vai machucar ninguém se tiver cooperação.

- Vocês podem levar o que quiserem – falei pausadamente e tranquilamente, enquanto minha família, sentada no sofá, permanecia calada e em choque.

- LÁ EM CIMA É O QUÊ VACILÃO? Perguntou nervoso o negro.

- São os quartos – respondi.

Os anos de Promotoria me tornaram apto a traçar o perfil de criminosos. Neste caso era claro:

O Negro trazia dentro dele toda a revolta contra a sociedade por anos de miserabilidade, como se toda a sociedade legalmente constituída fosse responsável por sua condição. Uma pessoa de alta periculosidade, pois a qualquer momento descarregaria sua revolta com muita violência.

O Moleque era um deslumbrado. Querendo ser respeitado e atrair alguma consideração seria capaz de fazer qualquer coisa que os outros mandassem. Depois iria se vangloriar para alguma menina igualmente deslumbrada somente para viver uma paixão irresponsável.

O Alemão nitidamente apresentava algum problema mental, algum tipo de psicopatia. De meia idade não se comunicava, nem se entrosava com facilidade. Suas reações eram típicas de pessoas com sérios problemas de cabeça, talvez por muita droga, genética ou outra situação.

O Franzino era deslocado, entrou nessa por falta de opção ou por ser facilmente influenciado. Tinha opiniões vacilantes, era manipulado pelos outros. Talvez tivesse salvação se orientado. Aparentava ser o menos violento e mais fácil de conversar.

O Tatuado era inteligente, perspicaz e se gabava disso. Autossuficiente sempre estava no comando da situação, pensava friamente e seria capaz de qualquer ação para manter sua condição de liderança, mas era acessível para negociar.

O Moleque com a porta da geladeira escancarada furava com os dedos os iogurtes e tomava-os no gargalo, fez a mesma coisa com leite, depois jogou tudo no chão.

O Tatuado, no topo da escada, em gargalhadas disse: O Negão, lembra aquela televisão de quarenta e duas polegadas que você queria? Acabou de ganhar! Tem duas aqui em cima.

O Negro e o Loiro ficaram nos vigiando enquanto os outros esbulhavam todos os cômodos da casa. Vez e outra, o Alemão apontava um Taurus cromado, calibre 38, cano curto, em direção a meu filho e gesticulava com a boca o som de um tiro, quase que involuntariamente meu filho se assustava seguido de um espasmo, então eu repousava minha mão sobre sua perna tentando acalmá-lo e dizia: ele não vai atirar, relaxa. Dizia aquilo sem certeza nenhuma, pois aqueles bandidos eram da pior espécie. O negro a cada dez minutos colocava um punhado de cocaína na palma da mão e aspirava num rápido trago.

Após abastecerem meu Hyundai Azera e o Hyundai Tucson ix35 da minha mulher com tudo que conseguiram carregar, puseram-se na minha frente e o Tatuado ordenou: Agora nós vai pega o dinheiro da sua conta.

Aquelas palavras meu causaram calafrios. Imediatamente retruquei: mas vocês já pegaram tudo de valor...

- Quem decide isto é a gente, OTÁRIO – respondeu o Tatuado – a caminhada é a seguinte – continuou – você vai com a gente e o Negão e o Moleque vai ficar aqui tomando conta da sua família, você tira o dinheiro da conta e tudo certo...entendeu?

Meu desespero aumentava a cada segundo. Chamei o Tatuado de lado e falei com toda tranquilidade que conseguia transparecer: você sabe o que faz, não quero me intrometer, mas por favor, deixa outro no lugar do seu amigo Negão ele está muito agitado...

- Mas é pra isso mesmo, é pra você não bancar o espertinho e fazer tudo que eu mandar.

Antes de sairmos o Tatuado gritou: - Aí Negão, segura a tua onda, só vai fazer o que eu mandar, tá entendido? – antes de sairmos entregou uma pistola semiautomática calibre 7.65 para o Moleque.

Saímos com os carros para um destino incerto. Passamos no caixa eletrônico para retirar o limite que era permitido. Vendaram-me e só voltei a enxergar quando estávamos num barraco de madeira sujo e bagunçado. O cômodo em que eu estava não tinha janelas, apesar de ter dimensões grandes era extremamente abafado, me causando uma sensação de claustrofobia. Eu estava com as mãos amarradas, na minha frente, sentado em uma cadeira de plástico, o Franzino me vigiava com uma espingarda doze no colo. Uma lâmpada amarela pendurada por fios de uma ligação elétrica deplorável deixava o quarto ainda mais quente. Explorei o lado humano que o rapaz parecia demonstrar e pedi para me desamarrar, já que eu não iria oferecer resistência. Como eu pensava, o rapaz atendeu minha solicitação. Aproveitei e pedi um copo d’agua. Ele se levantou e foi buscar, pude ouvir o Tatuado e o Alemão conversando no cômodo contiguo:

- A gente vai fazer o seguinte Lemão: amanhã de manhazinha tira mais dinheiro da conta do otário e mais a tarde vê se consegue tirar mais...

- PUTA QUE PARIU! OLHA QUE DIZ ESTE DOCUMENTO – gritou o Alemão.

- Deixa ver – retrucou o Tatuado – PROMOTOR DE JUSTIÇA, CARALHO! TAMO FUDIDO!

- QUE NOS VAMOS FAZER?! – Alemão perguntava desesperado.

Meu coração disparou de tal maneira que parecia a ponto de explodir, além da minha cabeça latejar.

O Tatuado discou no celular e deu para ouvir perfeitamente: Negão, azedo o pé do frango! Sobe geral, entendeu?! SOBE GERAL.

Eu sabia exatamente o que significavam aquelas palavras, era uma ordem para matar todos. Imediatamente num reflexo impensado, me levantei e corri em disparada, logo de início esbarrei no Franzino que trazia uma jarra de água, meu desespero era tão grande que do encontrão ele foi para o chão e eu continuei correndo. Era um barraco escuro, fedorento, com muitos cômodos interligados. Avistei uma porta e não pensei duas vezes, escancarei com toda minha força, para finalmente encontrar a rua. Se tratava de uma favela. Vários becos e vielas se estendiam por onde meus olhos alcançavam. Sem raciocinar corri a esmo, entrando nos becos mais próximos. Atrás de mim gritavam: PEGA. Reparei que o Alemão corria como um cão perdigueiro atrás de mim. Muita gente se espremia pelas ruelas, mas conforme eu me projetava as pessoas abriam espaço, não por minha causa, seguramente por causa daqueles que me perseguiam, os quais gritavam como loucos endemoniados. Eu sentia que o Alemão estava me alcançando, ele corria como um atleta. Avistei um grande barracão apinhado de pessoas. Imaginei que por um milagre da vida algum daqueles seres humanos podia ter complacência de mim. Dentro do barracão estavam dezenas de homens e mulheres todos vestidos de branco. As baianas em seus longos vestidos rodados giravam em frenético rodopio ao som ritmado dos atabaques. Rodopiavam em velocidade cada vez maior na medida em que o ritmo das batidas aumentava. No chão se espalhavam muitas velas e pessoas sentadas, garrafas de cachaça e animais sacrificados. A fumaça dos charutos criava uma névoa no ambiente quente e sufocante. Minha visão começou a escurecer e me sentia atordoado. De repente, sinto alguém atrás puxar com força meu ombro, era o Alemão. Até onde pude contar percebi cinco profundas estocadas nas minhas costelas com uma faca de açougueiro. Desfaleci no chão. Impressionantemente fui tomado por uma sensação de paz e conforto. Abri os olhos e o barracão estava silencioso. Não haviam homens, nem mulheres dançando, muito menos atabaques. Percebi o quanto era grande aquele galpão. No canto esquerdo, ao fundo, uma enorme poltrona, parecendo mais um trono reluzia na escuridão, pois toda a estrutura era de metal amarelo brilhoso que parecia ouro. Nele estava sentado uma figura enorme, mesmo sentado era alto. Apesar da penumbra, onde não conseguia distinguir sua fisionomia, tinha certeza que me fitava com persistência. Espalhados pelo chão estavam alguns negros idosos, de cabelo branco como algodão, porém de músculos rígidos. Estavam descamisados, somente com calças em trapos. No centro do galpão três mulheres negras com a mãos dadas formavam um círculo e no meio uma criança de aproximadamente sete anos. Todos permaneciam em profundo silêncio. Nada se ouvia naquele barracão, nem mesmo o barulho da respiração era possível ouvir.

Num instante, como num sonho, fui deslocado ao meio fio da calçada da Rua das Azaléas...

De súbito, tudo clareou no meu pensamento. Sabia exatamente o que deveria fazer e o que tinha acontecido...

- PRECISO VOLTAR AO TERREIRO, É ISTO...