A VINGANÇA - PARTE 4

GERHARD RICHTER



A vida é mesma uma caixinha de surpresas. Todos os dias que eu acordava e abria os olhos sabia que o dia me reservava algo que estava para acontecer sem a mínima possibilidade de antever, mas, no fundo do meu pensamento acreditava que, de alguma forma, as coisas estavam interligadas. Este momento presente certamente estava registrado em símbolos e sinais estranhos no papiro do cotidiano futuro do qual não tínhamos compreensão, apesar de vivenciá-lo a cada instante.

Pensava: basta eu me levantar e as coisas estarão para acontecer como foram descritas a acontecer, apesar de nem imaginar o instante seguinte. De alguma forma, num intrincado projeto aprovado o futuro estava lá, me aguardando, sem que eu soubesse quais rumos percorreria. Cada passo deixado para traz era a leitura inequívoca do projeto elaborado desvendado na impressão da realidade diária. E minha mente, como um computador registrava cada instante de informação, os quais jamais se apagariam, nem mesmo depois da minha morte porque o passado sempre permanecerá resoluto nos atos, coisas, pessoas que comigo conviveram. Estas coisas eu pensava assim que acordava. Me levantava como se o destino me aguardasse e reservasse algo especial para minha vida. Tinha a esperança de que esta existência concluída pelo persistente passado de que me lembrava ainda reservava algo importante e fabuloso. Isso me confortava ao ponto de me dar forças em caminhar para o laborioso dia de serviço da construção civil. Eu trabalhava como pedreiro numa construção grandiosa. Hoje estou no céu, mas já estive no inferno. Em tempo não muito distante me envolvi com o crime. Participei de muitos roubos e latrocínios. Diziam que eu não tinha perfil para aquele tipo de coisa, sempre tive cara de bom moço, sempre franzino, mesmo assim me meti com coisa bem pesada. Não gosto de lembrar quantas vezes tive que atirar para matar, tento sufocar estas lembranças no passado. Hoje, sou trabalhador, ralei muito para chegar até onde estou. Fui “oreia seca”, ou seja, ajudante de pedreiro. Comi muito cimento e cal, atualmente, estou numa posição melhor e insisto em continuar melhorando cada vez mais, especialmente por causa do meu filho e mulher. Hoje tenho família.

Meus dias são abençoados porque todos os dias, antes de sair para trabalhar vejo meu filho de um ano e meio que dorme um sono infinitamente divino em seu berço. Beijo sua testinha com todo carinho que me é possível, tentando transmitir naquele beijo o imenso amor que ferve na minha alma. Beijo, também, a pessoa responsável por oferecer a dádiva na minha vida que repercute na enorme emoção que experimentava naquele momento: minha esposa. A mulher é fenomenal, pois por natureza própria propicia, oferece gratuitamente a maior experiência da existência: o amor sublime. Assim meu dia começava, em um enorme desejo de viver e numa grandiosa gratidão de estar vivo. Lá, no meu serviço eram tantas outras observações...

Nossa labuta pesada tinha algo de leve. Todos os blocos que carregávamos, a massa que preparávamos, os andares que se exigiam levantar, o esqueleto prédio que se levantava ereto era difícil, cansativo quase insuportável. Mas na densidade do momento havia um elemento que suavizava. Sentíamos graça e contentamento, de estarmos reunidos cada qual com sua pesada tarefa. Este elemento que muitos não definiam, nem se davam conta, apenas absorviam num consumo moderado do dia-a-dia. Esse elemento era seu vizinho, seu colega de trabalho, o ser humano ao seu lado. Ser humano muitas vezes abatido, desperançoso, mas que por si só, num grupo maior, superava-se em possíveis maiores esperanças. Toda regra era união, e como toda regra há exceção, toda exceção também era união da conclusão que impunha a mudança necessária no indivíduo para manter coeso o todo.

Assim enxergava todos aqueles matutos, indisciplinados, obedientes, inteligentes, indulgentes, maliciosos, enfim, múltiplos e diferentes obreiros persistirem no projeto para colocar de pé o lugar onde muitos deverão morar e viver. Isso fazia de mim a pessoa mais feliz do mundo, apesar de eu ser franzino, ter feito algumas besteiras na vida, não ter riquezas, apenas experiência boas e ruins, sentia-me bem, até aquela noite...

Não havia como prever o que estava por vir. O desdobramento natural das coisas parecia inevitável, entretanto, eu queria interferir apenas vinte minutos no tempo para tentar alterar toda a cadencia que se sucedeu.

Todos os dias, vinte minutos antes do fim do expediente, o encarregado chegava para checar o trabalho e apenas depois da vistoria éramos dispensados. Naquele dia demorou quarenta minutos para chegar, então fui embora vinte minutos depois que o ônibus passou. Peguei o próximo que percorreu seu itinerário dos vinte minutos incomuns para mim. Cheguei no ponto próximo ao morro após vinte minutos do normal. Subi a longa escadaria até meu barraco, atrasado vinte minutos. Encontrei um vizinho que jamais encontraria se não fosse aquele horário. Ele me contou alguns causos que haviam acontecido pela manhã e outros assuntos de pouca importância. Quando estava, provavelmente, vinte metros do meu barraco senti forte cheiro de gás. Sem tempo de nada, o barraco explodiu e se incendiou frente aos meus olhos lacrimejantes da dor e substancias tóxicas que me envolveram. A vizinhança em polvorosa trouxe água, extintor e o que mais pudesse apagar as labaredas. Tudo em vão.

Quando controlamos a chamas e os bombeiros fizeram o rescaldo, era tarde. Estavam eles...carbonizados...

Meu filho e minha mulher haviam morrido queimados.