MARIKO MORI
Um ótimo texto de VLADIMIR SAFATLE que possui uma
profundidade reflexiva da qual comungo, por isso faço questão de deixar aqui
registrado. Vladimir é professor livre-docente do Departamento de filosofia da
USP (Universidade de São Paulo). Escreve às sextas na Folha de S.Paulo.
A
modernidade nos acostumou à ideia de liberdade como expressão da autonomia
individual. Hoje, ela nos é uma ideia tão natural que parece simplesmente
impossível pensar de outra forma.
Nossos
professores procuram criar alunos autônomos, os pais lutam por terem filhos
autônomos, os psicólogos agem para reconduzir seus pacientes à condição de
sujeitos autônomos, a democracia pede por cidadãos autônomos.
O
mesmo termo em tantos contextos diferentes expõe a força de um princípio
normativo geral. Sair do horizonte que tal ideia de liberdade define seria, de
certa forma, colocar em questão algo de aparentemente fundamental e decisivo em
nossa própria identidade como sujeitos modernos.
Segundo
essa concepção, seríamos livres quando fôssemos capazes de nos autogovernar, de
sermos os legisladores de nós mesmos, de estarmos sob a jurisdição de nós
mesmos. Essa seria a forma de realizar o que já dissera o filósofo Jean-Jacques
Rousseau: ser livre é indissociável do ato de dar para si mesmo sua própria
lei.
Tal
capacidade de autogoverno aparece, para muitos, como a expressão mais bem
acabada da maioridade produzida pela experiência de emancipação. Se não podemos
dar para nós mesmos nossa própria lei, estaríamos em situação de alienação e
servidão, pois seríamos dirigidos por um outro.
Mas
notemos algo interessante nessa concepção. Ela parece nos fazer crer que o
objetivo real de criar indivíduos emancipados e livres seria de levá-los a
serem, em uma metamorfose contínua e reversível, o juiz e o acusado. Um pouco
como se estivéssemos a ver uma simbiose perfeita entre a consciência que julga
e a consciência que age.
Já
se falou da razão como um tribunal. Mas nem sempre se falou que tal tribunal
nos ensina, entre tantas outras coisas, que nossa liberdade seria a capacidade
adquirida de se mover entre a cadeira do juiz, o olhar do júri, a fala do
acusador e o peso do acusado, sem em nenhum momento se perder.
Há
uma habilidade de prestidigitador neste jogo de cadeiras. Pois o elemento
fundamental aqui é a noção de simetria das posições. Independente do lugar que
ocupo, continuo sendo Eu mesmo. Ser livre é ser um só na multiplicidade de
várias vozes. No entanto, faz parte das ilusões fundamentais da noção moderna
de indivíduo acreditar que me torno eu mesmo em sua maior perfeição
principalmente quando exerço a lei que me julga.
Ou
seja, um dos maiores milagres dessa concepção foi nos fazer acreditar que
liberdade é a crença de que entre as ações e as razões, entre os atos e as
leis, há uma identidade absoluta de direito, pois todos eles são
"meus".
Daí
por que tudo o que é involuntário, inconsciente, insubmisso a leis, o
contingente só pode aparecer como um atentado potencial à minha liberdade.
No
entanto, poderíamos nos perguntar se não haveria um problema com tal concepção
de liberdade.
Tudo
o que causa minhas ações de forma involuntária, tudo o que quebra a jurisdição
das leis que um dia pareci dar para mim mesmo é, de fato, um atentado à minha
liberdade? Não haveria entre nós uma outra concepção de liberdade, mais difícil
de enxergar, para a qual sou livre quando sou capaz de me abrir àquilo que não
controlo completamente, àquilo que não se submete à lei que tomei por minha?
Essa
outra concepção não dirá que liberdade é autonomia. Ela dirá que liberdade é
saber que há sempre um outro que me causa uma alteridade profunda que me afeta,
que por isso minhas ações nunca são completamente minhas.
No
entanto, nem sempre essa heteronomia é sinônimo de servidão. Ou seja, liberdade
é abrir-se a uma heteronomia sem servidão. Seria melhor pensar assim. Isso nos
deixaria mais aptos a ouvir aquilo que nos atravessa sem nunca adquirir a forma
de nós mesmos.
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