A vida realmente é uma caixinha de surpresas. Sabe
qual a única coisa que tem valor de verdade: as experiências vividas. Isto é o
maior bem e para sempre. O que senti nunca se apaga. Lembro como se fosse
ontem, certamente uma das melhores viagens que realizei na vida.
Eram tempos de amores ardentes e amizades eternas.
Ainda muito jovem possuía a volúpia criadora que ardia num espírito imaturo e
voraz por novidades, por desbravar os caminhos perpétuos da terra, experimentar
os sabores do ar e se banhar em águas profundas.
Sentia-me capaz de tudo, não temia coisa alguma. Apresentava-se
na minha frente um mundo descomplicado, onde o palco era o qual pretendia atuar
e conquistar todos prêmios que a vida podia oferecer.
Éramos jovens visionários e irresponsáveis. O
único compromisso realmente confirmado era a amizade que nós quatro
mantínhamos. Eu, Vitória, Luiz e Demétrio selamos um pacto de sangue de jamais
um abandonar o outro.
O acordo incluía que deveríamos nos divertir, experimentar
todas as coisas - com responsabilidade - para que pudéssemos ter a exata medida
do certo e do errado. Se bem que tendíamos andar pelo lado torto da vida muito
mais que pelo lado reto.
Em nosso vocabulário não poderia existir duas
palavras: “proibido” e “regra”.
Numa das várias reuniões que fazíamos em torno de
uma mesa de bar repleta de cerveja, uísque, rakia, cigarro e algumas outras
substancias proibidas que coexistiam camufladas, redigimos no papel de
guardanapo a Ata decisória da nossa unanime deliberação em abolir do nosso
convívio aquelas duas palavras.
Após calorosas discussões todos fundamentaram suas
decisões em profunda e complexa retórica. Resumidamente concluímos que:
“É proibido proibir. Porque proibição é castração,
ação impeditiva do ser humano expressar, contemplar, propulsionar a força
criadora inerente a concepção da existência, que é livre por natureza”
“Regra é tudo aquilo que proíbe. Qualquer ação ou
omissão que tenha o escopo de diminuir o poder de agir; estabelecer limites de
agir ou não agir, representará proibição, o que é proibido, a não ser esta
regra que intrinsecamente é livre de qualquer regra antecedente”.
Questionamo-nos, então: nossa Lei é uma regra?
Decidimos que por ser a regra das Regras será a única legítima a se impor.
Nestas e em outras conversações é que adentrávamos
madrugada embalados por boa música e muita bebida.
Tudo isto foi decidido em um restaurante de Varna.
Uma cidade encantadora ao leste da Bulgária.
Cidade maravilhosa, contagiante e de um povo
acolhedor. Seu litoral repleto de lindíssimas praias banhadas pelo Mar Negro, onde
o azulíssimo tom das águas deveria se chamar Mar Cristalinamente Azul.
Os dias em Varna são quentes e atraentes,
propícios ao mergulho no mar e andar pelo comércio local de chinelo, bermuda e
camiseta regata.
As noites em Varna são esplendorosas. Rapaziada
apinhada nos restaurantes modernos e descolados, porém com marcante estilo
arcaico, provavelmente resquícios dos povos Indo-Europeus que permeiam a
história da cidade com arquitetura nitidamente influenciada pela Trácia.
Nas muitas ruas arborizadas há algo de macedônio.
Os prédios baixos disputam espaço com monumentos russos históricos, inspirando
tradição e modernidade, numa cidade de vocação turística, industrial e
comercial, tudo ao mesmo tempo.
O mais saboroso, além do peixe com banitsa, era o
cheiro das ruas. Tinha aroma de café com hortelã.
Caminhávamos felizes, nos surpreendendo em cada
esquina como turistas devem ser. Até as fachadas pichadas nos pareciam uma obra
de arte a contemplar. Estávamos ávidos em desfrutar da cidade o melhor que ela
reservava.
Numa dessas andanças atracamos no Mr Baba para nos
embebedar. A mesa ao lado tinha três jovens como nós, que se divertiam como nós
e estavam receptivos como nós.
Sob reprimendas dos garçons, juntamos as mesas bem
ao estilo brasileiro de ser, o que diante de nossa insistência permitiram a
contragosto.
Eram duas mulheres e um homem: Jackeline, Sofia e
Jorge, este último um português fanático pelo Boavista.
Sofia era escandinava, originária do extremo norte
da Dinamarca e Jackeline uma francesa feminista extremista.
Jackeline defendia a supremacia da mulher,
exaltando sua força e inteligência diante da inferior espécie humana denominada
“troglodita macho”, segundo suas palavras.
Apesar do seu discurso radical feminista era uma
mulher encantadora, sedutora e linda. Olhos azuis, pele branca, cabelo negro
comprido cacheado na altura da sua formosa anca que guarnecia lindas e
torneadas pernas sobre delicados pés.
A noite passou tão agradável que muitas outras se
seguiram. Como em um antigo ritual Celta, nos reuníamos sempre na mesma hora e
local para, sob influência etílica, debatermos ao estilo grego todas as
políticas e ciências romanescas, apesar de sempre desembocarmos em alguma
constatação freudiana.
Jackeline, apesar do incisivo e inflamado discurso
feminista, no qual defendia que os homens deveriam se curvar aos poderes
soberanos da mulher, lamentando a reles alma inferior do macho era, aos meus
olhos, radical e sensível. No fundo daquela carcaça de tanque de guerra
enxergava uma mulher dócil, a espera de um grande amor. A única coisa que meu coração
clamava era querer e desejar aquela mulher incrível para o resto da minha vida.
Isto aumentava a cada dia que nos encontrávamos.
Em um sábado à noite em Varna, numa festa
incrível, sedutora, decidi que seria o momento perfeito para me declarar.
Reunidos em torno de uma fogueira bebendo vinho,
nós e vários amigos, todos felizes demais que quase não se continham, eu apenas
conseguia vê-la e aprecia-la cada vez mais. Ela conversava animadamente comigo
de forma que tudo parecia perfeito e reciproco. Na minha mente aquele era o
lugar ideal, somente deveria acontecer no momento exato de nos encontrarmos e
nos atracarmos em louca paixão.
Em determinado momento ela se levantou e correu
feliz para a casa grande. Aquele era pra mim o sinal. Aquele seria o momento
exato, tudo estava confluindo favorável, bastava segui-la e num local magico
nos abraçaríamos com toda paixão.
Acompanhei ela com os olhos até perde-la entre
alguns arbustos. Levantei empolgado com o
fervor da minha paixão e com sublime amor no coração corri na direção da
mulher que estava prestes a cair em meus braços.
O arfar em meio as folhagens precedia o meu
desejo e antes que meu sorriso despencasse do rosto flagrei Jackeline e
Vitória atracadas em ardentes beijos, roçando o corpo uma na outra com
ardência, volúpia e paixão.
Não me avistaram, mesmo porque recolhi meu pequeno
corpo a sombra do arbusto, fixando os olhos naquela cena e tentando digerir se
era verdade ou um terrível pesadelo.
Era verdade, uma verdade crua, nua e cruel. Elas
se beijavam como duas apaixonadas amantes. Minha melhor amiga com a deusa do
meu amor. Não consegui olhar por muito tempo, aliás, consegui ficar apenas
alguns segundos, então fui embora – pela primeira vez.
A noite pra mim havia acabado. Um sentimento
horrível. Um misto de fracasso, perda, depressão.
A saudade me invade nas noites longe dela, onde
seu rosto é a última coisa que enxergo antes de adormecer; sinto necessidade em
vê-la, conversar; o pensamento persistente o dia inteiro naquela mulher. Estou
apaixonada. O mundo parece diferente, alegre, com muito sentido de viver. – no dia seguinte confidenciava-me Jackeline, sobre a mulher que também havia me apaixonado.
- Mas Vitória, eu nem sabia que você era gay ?!
- Nem eu Renato, aconteceu de repente. Sei que
estou apaixonada e ela por mim.
- Estou voltando hoje para o Brasil
- Vai embora! Mas está tão bom aqui, por que...
- Você não percebeu? Eu também estava apaixonado
por ela. Tenha a santa paciência, todo o mundo percebia minha paixão, apenas
você se fez de desentendida...
- Renato juro que não sabia. Além do mais
aconteceu entre a gente, a química não ia rolar contigo...
- É por isto que estou indo embora. - pela segunda vez.
Naquele dia deixei Varna para traz. No avião recordava
os excelentes momentos que passei e que agora tentava esquecer o dia em que a
encontrei.
Mas, como tudo nesta vida passa, sendo o tempo o
senhor de todas as soluções, a vida seguiu e, após muitos anos aquela paixão
era uma esmaecida lembrança de uma grande viagem de verão.
Milhares de coisas se sucederam em minha vida
depois daquela viagem, e pelas disposições das coisas que seguiram seu curso
perdi contato com aqueles velhos amigos.
Acontece
que você sempre se encontra com o passado – cedo ou tardiamente.
Num final de tarde, após o trabalho, fazia compra
no supermercado quando meu carrinho se depara com o carrinho da Vitória.
Lembrei que seu nome advinha das dificuldades que teve quando nasceu, foi uma
luta para sobreviver.
Estava bonita, mas com as nítidas marcas do
envelhecimento que nosso corpo inevitavelmente mostra. Percebi, naquele
momento, que também estava velho.
Sentamos para tomar um café e reviver anos de
passado. Certa altura da conversa ela tocou na ferida.
- Você precisa saber o que aconteceu depois que
foi embora – disse ela com uma atmosfera enigmática que realmente senti vontade
de saber.
- Conta, então – concordei.
- Foi uma decepção – falou desanimada.
- Na noite em que estávamos no quarto do hotel
para nossa primeira transa – deu uma pausa e continuou – me senti apunhalada
pelas costas, uma traição imperdoável.
- Que aconteceu? – perguntei
- Ela era transgênico, era a porcaria de um homem.
Aquele pinto enorme no meio das suas pernas me deixou confusa e traída.
E continuou
- Perguntei porque me escondeu todo tempo e ela
respondeu simplesmente que havia esquecido de ser homem, e como mulher, gostou
de outra mulher.
- Mas eu queria uma mulher, ela não foi sincera.
Naquela noite tudo acabou...
Um café dos mais estranhos que tomei. Mas a vida
seguiu.