TENHO UMA ESTÓRIA PARA CONTAR

ED RUSCHA



Tenho uma estória para contar, mas não sei bem por onde começar. Aconteceu há muito tempo, as lembranças por vezes me traem, pois, não sei se imagens tão nítidas realmente aconteceram ou são competentes edições criadas pelas lacunas da minha memória na necessidade do encadeamento dos fatos e datas.

De qualquer maneira, meu espírito guarda a sensação tão presentemente acesa que posso me dar ao luxo de lhes contar detalhes do sucedido como se fosse hoje.

Era outubro de 1988, na cidade de Santos. Estava eu sentado no banco da praia olhando o mar. Era um dia de semana qualquer, se não me falha a memória era quarta-feira. Não fazia sol, aliás estava nublado, uma névoa branca e úmida pairava sobre o mar agitado. Ondas bravias quebravam na beira da areia com ferocidade incomum.

Eu acabara de burlar aula. Era época de ginásio e eu não estava com menor vontade de ir para escola. Naquele dia havia saído de casa como todos os dias. Minha mãe como sempre me deu bom dia, preparou meu café e desejou boa aula. Mas, na minha mente estava consolidado que não iria pra escola.

Até cheguei perto da entrada, conversei com alguns colegas e puxei de lado uma menina que eu ficava esporadicamente. Contei a ela meu plano de não entrar no colégio. Abismada quis saber para onde eu iria. Respondi que iria dar um “rolê” sem destino, deixar minhas pernas levar para além dos limites do mundo.

Lembro bem que ela sorriu e me chamou de “louco”. Orgulhoso e sedutor entrelacei meus braços em sua cintura e puxei com força seu corpo perto do meu, ao ponto dos lábios dela se alinharem aos meus numa pequena distância. Sentia seu hálito e respiração tão próximo que um torpor de alegria misturada com ansiedade tomou conta do meu corpo. Sabia que ela passava pela mesma comoção.

Roubei-lhe um beijo intenso e molhado, daqueles que as línguas e salivas se misturam numa efervescente ebulição como se fosse o último prazer das nossas vidas.

Sentia o batimento cardíaco dela com o mesmo tom acelerado do meu. Uma quentura e excitação tomava conta das partes de baixo. Rocei minha coxa entre as dela cujo calor e umidade aumentavam nossa paixão que se expressava em plena luz do dia numa cena de dois adolescentes que imaginavam o mundo ser deles e para eles, para sempre. Pelo menos assim eu naquele momento idealizava.

Entretanto, numa lucides incompreensível que pertence somente às mulheres, ela me empurrou dando um basta no êxtase, colocando-me numa realidade a qual eu pensava não existir.

- Você é doido! Vamos entrar, já está na hora.

- Eu não vou entrar, já falei. Vem comigo, vamos fugir...

- Vai sozinho seu maluco, eu vou entrar

Ela se afastou de mim, caminhando portão pra dentro, me deixando com uma frustração interminável, como se toda emoção que acabara de acontecer nada valesse. Fiquei mudo, apenas olhando ela se afastar e dar uma breve olhada e tchau.

Indignado ao mesmo tempo comovido sentia um misto de raiva e orgulho. Satisfeito, eu sentia que aquele beijo marcara contundentemente a alma daquela mulher, mas, também sentia raiva por ela não me acompanhar no desbravamento do mundo que eu estava a ponto de empreender.

Corri com força e rigidez que a natureza me contemplava atrás de cindir territórios e limites. Em poucos metros, sozinho e carregando uma mochila, deparei-me com a realidade do julgamento moral. Mas, naquele ponto não havia mais volta.

Acabei sentado no banco do jardim olhando o mar. Foi o mais longe que cheguei.

Um vento gélido por vezes transpassava meus ossos, fazendo tremer os lábios, contudo o ralo agasalho que cobria meu corpo e a bermuda abaixo dos joelhos eram suficientes para me manter aquecido ao ponto de não me incomodar com o fino sereno que persistia em cair dos céus.

Meu pensamento parecia transcender qualquer realidade daquele momento. As ondas quebravam espumantes a beira-mar e o som era algo particularmente agradável, pois ressoavam como sinfonia nos meus ouvidos.

Der repente ao meu lado senta um velho sisudo, taciturno. Fitou-me com seriedade e maturidade.

Senti-me constrangido e naturalmente surgiu a obrigação de conversar algo. Asseverei: tempo feio, esse...

Sem tirar os olhos das ondas que quebravam bravias na areia ele me respondeu:

- Pois vejo o tempo claro e límpido, você que na sua meninice enxerga dessa maneira.

Desconcertou-me completamente aquela inopinada resposta. Que sujeito conversaria daquele modo, me perguntei.

- Quem é o Senhor?

- Me diga você quem sou eu.

O homem vestia uma surrada calça jeans, sapatos pretos desgastados, uma camisa lisa de botões prateados, um cinto com fivela de cavalo alado e carregava em sua mão esquerda algo que não pude adivinhar.

- E eu sei lá?! Como posso adivinhar.

- Pois deveria, porque eu sou você.

Soltei uma gargalhada e perguntei sarcasticamente:

- Então diga algo que não sei.

- Você é o filho mais velho de uma família de dois irmãos, sua mãe se separou do seu pai, o que pra você foi um alívio, pois eles brigavam constantemente e isto te deixava ansioso e com medo, ao ponto de correr para o quarto e brincar com seu boneco “fuzileiro” como se nada existisse no mundo, a não ser as estórias que você inventava como se fosse o próprio boneco.

Fiquei estupefato, ora, como poderia saber tanto de mim. Continuou falando coisas tão pessoais que nem meu maior amigo poderia saber. Coisas que eu mesmo tento esquecer.

Fitava o velho desconfiando. Como aquela figura deplorável poderia ser eu. Não era aquela vida que desejava, meu espectro de conquista era maior, estava pronto para cindir oceanos e desbravar Continentes. Não haveria de me transformar naquilo. Pensava em conquistar a América, dialogar com a Europa, aprender línguas, conhecer o extremo Sul Asiático.

Mas o velho era tudo o contrário.

Pairou de repente um silencio e, como se soubesse o que eu pensava, disse:

- É dinheiro que você quer?! Tenho muito, muito mesmo – enfiou a mão no bolso e tirou um enorme punhado de notas enroladas no elástico e jogou no meu colo.

Numa rápida observação percebi se tratar de notas de cem reais.
- Esse é seu problema: julga os outros pela aparência. Acha mesmo que esse iphone que carrega no bolso te faz digno de uma pessoa de respeito?

Como ele sabia?! Era o bem mais importante na minha vida, eu fiz de tudo para ganhar o aparelho, pois depois dele sentia-me o homem mais desejado do mundo.

- Aquela menina que você acabou de beijar. O que sente por ela?

Não sabia o que responder, aliás estava abismado.

- Você apenas quer saciar seu ego, seu prazer. Precisa mostrar aos amigos que é o garanhão, também quer aliviar o tesão, mas é só, não tem respeito nenhum por ela.

Onde você mora? – perguntei.

- Hoje moro em Brasília, mas nem sei onde moro realmente, minha vida é viagens, não tenho gente para me fixar. Mas tenho barcos, avião a disposição. Conheci o mundo inteiro e pessoas importantes. Tenho propriedades espalhadas pelo Brasil, a maioria no nome de outras pessoas que sugam meu sangue como sanguessugas.

- Você tem filhos – quis saber

- Tenho dois meninos que raramente conversam comigo, moram com minha “ex” que só pensa o quanto vai receber no final do mês. Não cultivei amigos porque o que sempre me interessou foi o poder. No Poder não há amigos...

- Você é feliz?

- O que é a felicidade para você? – retrucou.

- É ter muito dinheiro pra comprar o que eu quero, ser conhecido, respeitado, mulheres a hora que eu quiser, a felicidade é isso – respondi.

- Então, assim, eu sou feliz – disse o velho.

- Por que com tanto dinheiro que diz ter está vestido assim: surrado?

- Porque alguma coisa tenha mudado – respondeu hesitante


Acordei de um cochilo com meu filho me cutucando, sentado no sofá da minha casa de dois quartos, num tranquilo bairro onde com minha mulher e filho revia fotos antigas, que estavam guardadas no fundo de uma caixa de sapatos.