BARIS DOGRUSÖZ
O
inferno não está embaixo da terra. Os espíritos malignos não se escondem nas
trevas.
O
inferno está aqui, sob o mesmo solo que pisamos. Os espíritos malignos andam
livremente à luz do dia entrando e saindo dos seus gabinetes, assinando papéis,
dando ordens, cheios do Poder.
Não
precisa de muita explicação para perceber o lamaçal em que vivemos, infestado
por todo tipo de verme venenoso.
O
curioso é que o lúcifer e seus discípulos são pessoas como nós que dormem,
acordam, comem, cagam, fazem sexo, riem, amam, vivem normalmente. Apenas uma
diferença: possuem poder, coisa que você não tem.
De
toda hierarquia do mal que há na Terra, a estória que escutei me emocionou. Se
passa lá do outro lado do Mundo: na Síria.
“Dezenove
decibéis. Esse é o volume de um sussurro, o máximo de ruído tolerável na prisão
síria de Saydnaya, onde detentos ficam o tempo todo vendados. Eles guardam na
memória só o eco dos passos dos vigias, o barulho das fechaduras das celas e os
gritos dos torturados...
...O
limite entre silêncio e ruído ali é o limite entre vida e morte.”
Assim
pode ter acontecido:
Estou muito fraco para me levantar, minha mão esquelética parecia ser de outra pessoa,
não tinha um espelho para me olhar, por isso apalpava a magra face imaginando o
rosto sugado no vácuo igual aos companheiros de cela que se amontoavam uns sobre os outros como esqueletos no inferno de Dante.
Fazia cinco dias da última refeição, quando o
guarda trouxera o balde derramando no chão sujo da cela uma mistura de
alimentos que mais parecia lavagem para porcos, mas de tão esfomeados devoramos implorando por mais.
Os
olhos se acostumam com a escuridão. Passávamos maior parte do tempo vendados. Éramos proibidos de enxergar o mundo, porém pertinentemente ele passava por nossa mente.
A
noção de sucessão dos dias era sutil. Frestas ou pequenos buracos no concreto
sólido das paredes e do teto deixavam a luz do sol penetrar e avisar que o dia
começava ou acabava.
Quando o feixe de luz se apagava a vida entrava em estado inerte, nenhum som
poderia ser ouvido se não permitido...
...senão
os passos dos guardas, o tintilar das suas chaves, a abertura das fechaduras, o
ruído de alguém ser agarrado, arrancado, arrastado, os gritos de desespero,
socos, chutes, impacto das barras de ferro, dos caibros de madeira, do crânio
trincando, ossos se quebrando, murmúrios agonizantes...
Sabia
que quando o sangue espirra faz um barulho característico?
Se
for por perfuração espirra grave, como coagulando dentro do próprio corpo. Mas
quando é por pancada espirra agudo, vertendo para fora. Assim dava para
imaginar cada lesão do torturado.
Dezenove
decibéis: esse é o volume de um sussurro. O máximo de ruído tolerável. Após os
feixes de luz solar se esmaecerem, a coisa piorava.
O
limite entre silêncio e ruído ali é o limite entre vida e morte:
A
respiração ficava ofegante e ruidosamente sonora. Eu entrava em desespero
tentando controlá-la para não chamar atenção, o que apenas piorava o controle. Foc, foc, foc, foc, os passos dos guardas aos poucos se aproximavam, foc, foc, foc e
minha respiração ofegante aumentava, foc, foc, foc ficavam mais altos e cada
vez mais próximos, tentava não respirar, foc, foc, foc, prendia a respiração
até quando pudesse e pensava nos dias bons fora da prisão, pensava em qualquer
coisa boa, mas foc, foc, foc e a sudorese pelo corpo, tentava enxergar um campo
verde, o rosto lindo dos meus filhos, tentava mas meus ouvidos não se
desligavam dos passos dos guardas se aproximando, cada vez mais altos, foc, foc, foc e minha
respiração aumentando num volume insuportável, o coração batendo acelerado,
agora essa, o coração fazendo barulho, bum, bum, bum, em ritmo acelerado,
pronto agora não falta mais nada para chamar atenção, era só a respiração agora
também o coração no volume inaceitável, eu precisava pensar nos campos de trigo,
nos meus filhos correndo sob o sol, na minha mulher linda e agradecida, mas
nada, nada, nada superava o foc, foc, foc, foc, se aproximando, meu corpo tremia
eu respirava descompensado meu coração batia descompassado, meu corpo berrava
sem emitir palavra, até que os passos, de súbito, pararam.
Um
instante suspenso no ar, a tensão congelada. Cinco vultos pararam em frente a
cela, como espíritos das sombras vindas do inferno. Lançavam luzes da lanterna
sobre nossa repugnante existência, aninhados como bichos indefesos.
Controlei
minha respiração como se não precisasse mais, nunca mais respirar porque estava
numa dimensão inerte de vida, numa esfera intermediária onde podia me
salvaguardar da morte iminente, me escondendo na dobra do tempo e espaço tentando
preservar o pouco de vida que me restava.
Senti
uma lufada de vento e percebi que o companheiro ao lado havia sido
violentamente içado. Seu corpo foi suspenso no ar como uma marionete. Puxaram
ele pelo pescoço e arrastaram seu esqueleto pelo corredor: batendo, batendo,
batendo. Não tinha forças nem para gritar, apenas gemer de dor. Grotescos
gemidos que iam se esvaindo.
Dava
para ouvir os guardas comentarem que “ele precisaria ser puxado”.
Isto
significava que aquele detento estava tão magro que o peso do seu corpo não
seria suficiente para o enforcamento, portanto os vigias deveriam puxar suas
pernas para dar o auxílio necessário para morrer, ainda que lentamente.
Não
víamos nada, mas ouvíamos e sabíamos de tudo. Caminhões diariamente carregavam centenas de
corpos para alguma vala comum.
Quase
não dormia, ainda que cochilasse acordava assustado mas quieto para ninguém
saber da minha presença, queria ser esquecido. Apenas não era esquecido por
eles: nos poucos sonhos que tive. Minha linda mulher alegremente me abraçando,
o sorriso no rosto do meu filho correndo entre os campos de trigo, brincando,
sorrindo e todos nós nos abraçando. Era o céu.
Esse
sonho valia muito, muito mesmo. Mas, a realidade é que lá fora os cavaleiros do
apocalipse estão entre os Governantes do nosso Mundo.
E não é só do outro lado do mundo...
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