JOAN MIRÓ
“...significa o quê
isso tudo dentro de mim?! – inquiria-me enquanto olhava para a minúscula cidade
sob os meus pés...”
Vigésimo-sexto andar,
mais dois lances de escada, outra escada em caracol que desembocava numa
portinhola, hesitantemente escancarada e, quando pisei no pátio do terraço do
prédio embasbaquei-me diante da melhor e maior visão que se pode ter da
compreensão de uma cidade inteira.
Estava no teto do mundo.
No nível enormemente superior visualizando do vigésimo sétimo andar ou coisa parecida
porque ali já acabará a contagem.
A cidade se estendia
por todos os lados, com seus prédios, suas casas, avenidas, ruas, caminhos
tortuosos, viadutos lineares estendidos em sentido reto ou quase reto, luzes
pulsantes, faróis e lanternas perambulantes, tráfego de coisas minúsculas indo
e voltando não sei de onde nem para onde, seu movimento eterno, um silêncio
frenético.
O vento forte lambia
meu corpo avisando dos perigos que guardava a calha do perímetro, na qual com
meus pés escorados sucumbia para observar com melhor precisão a cidade que
nascia, vivia e morria embaixo dos meus olhos sensíveis e lacrimejantes.
Num horizonte de
intervenção humana se erguia todo tipo de construção, sendo que cada imensidão
daquele mundo se edificava um nicho específico de habitação.
Pontos diferentes da
cidade mostravam estados de humor díspares. Eram muitas cidades num único
lugar. De um lado a cidade toda dormia; do outro estava bem acordada e se
divertia; havia a cidade embriagada; pontos em que começava despertar; tinha a
cidade que apagava as luzes para descansar.
Nas cercanias
longínquas, na borda periférica se via enormes chaminés que cuspiam fumaça sem
parar, o ar em torno era vermelho e pesado aceso pelas chamas que se lançavam
no espaço, como dragões metálicos precedendo a destruição.
O manto de concreto se estendia a perder de
vista; nichos identificáveis ou não, caracterizavam minha percepção de quão
múltiplo somos, ao momento em que coexistimos no mesmo espaço-tempo.
O espaço físico era o
mesmo. Dei-me conta que sob meus pés vidas aconteciam, rumavam num curso
independente do que eu poderia pensar, aliás, nesta infinidade de comunhão, vidas
completamente diferentes da minha opinião seguiam na contramão.
A confusão na minha
cabeça se misturava à confusão de todas as obras da cidade. Entendi que as
confusões de todo o conjunto dos seres individuais resumiam-se num equilíbrio binário
que moldava a rocha ígnea arrancando-lhe talhos e lascas para extrair da densidade
heterogênea sinergias homogêneas.
Essas coisas circulavam
dentro do meu cérebro enquanto uma corda de feltro aveludado laçava meu
estômago comprimindo-o com um nó-cego apertado.
Olhei para baixo e pensava
em pular ao encontro do único destino que estamos desde o nascimento fadados a
alcançar: A Morte.
Pensei que todos os
nossos esforços para viver tinham um único objetivo: morrer
Mas eu não queria esse
destino. Engraçado como aquilo que não posso fugir é o que menos encaro, mas ao
qual sempre me deparo. Então, debrucei-me mais no parapeito para desafiar meu
próprio pensamento, o medo corroía meus músculos, mas minha resignação em
canonizar-me incentivava alegremente o desejo de pular.
Como sofria com isso...Comi
o pão que o Diabo amassou. Assim mesmo degustei como iguaria o pão pisado pelo
demônio.
Parecia não haver
ninguém, mas tinha todo o mundo. Pontos vermelhos sobre prédios avisavam aos
viajantes o limite do voar. No céu, acima das construções mas muito abaixo das
constelações um trafego intenso de aeronaves seguiam por rotas delimitadas com
risco de num descuido qualquer do controlador chocarem-se fatalmente nas
saturadas estradas dos céus. Imaginei que o descontrole de todas as coisas deveria
sempre estar precedida pelo controle incompleto de alguma outra coisa. Somente
quem controla poderia afirmar que saiu do controle.
Pensei na minha vida
pregressa, nos meus males, nas minhas sacanagens, nas minhas falsidades, no ser
idiota que muitas vezes sou, pensei também nas pessoas que poderiam sentir
minha falta, no filho, na esposa, nos amigos, no sol da manhã, na água gelada, no
mar salgado, na boa música, num dia de domingo ensolarado, no cheiro de mato, no
canto de um pássaro.
Pensei sobre tudo que
fui, quem sou, que deixei de ser. Pensei no ser meramente aceito e desejável.
Pensei no ser imprestável e no ser autêntico, amável. Prescindi de muitas coisas e muitas outras
imprescindíveis memorizei.
Pressenti-me preparado
ao ponto de pular, até visualizei meu cérebro esfacelado, calculei a força do
meu salto visualizando o ponto que deveria me chocar, procurava um local menos
transitável para não acertar ninguém e também não fosse local de muitos carros
para não causar um acidente, queria que fosse um local discreto onde meu corpo
sofresse o maior impacto possível sem chamar muita atenção, não podia ter
obstáculos que contivessem minha queda, mas também não deveria ser muito
apagado onde o resgate e as pessoas não conseguissem ver meu rosto ou o que
sobraria dele porque meus familiares deveriam ser noticiados.
Senti um calafrio de perder
tudo, o medo de tudo subitamente acabar conteve-me.
Observei a vida lá
embaixo continuava indiferente, os passantes, transeuntes seguiam
indeterminados, aquém ou além do meu momento. Nenhum ponto parecia merecer as
entranhas do meu corpo.
Pensei: aquela visão
homogênea da cidade vista de cima guardava apenas uma tênue referência de mim
mesmo porque lá embaixo cada pessoa era um indagador contumaz com muito mais
capacidade de se perder em abstrações fúteis e com muito menos
responsabilidades ao ponto de não ter tempo para se preocupar com bobagens e sendo
este o discurso promissor do vencedor ancoravam-se capengas na muleta da
cegueira para elevarem suas autodenominações mentais ao ponto de certificarem-se
da importância de si mesmos numa rota de fuga em direção a cortina de fumaça
disfarçada de lucidez, isto era o que eu achava que eles pensavam e de acordo
com meu entendimento úteis eram minhas abstrações e pensamentos por isso me
enojava a idéia deles preferir abstrair o que eu desconsiderava importante ao
subtrair o vil valor que contemplavam.
Cuspi forte e denso com
todo escarro que pude puxar do peito querendo acertar bem no meio da cabeça de
alguém.
Pensei intimamente e
pensei que deveria deixar de lado algumas coisas. Pensei conhecer mais e viver um pouco mais.
Desci ao andar térreo
para entrosar-me aos passantes e conhecidos de sempre. Globalizar, no limite da
interatividade.
Conversei com o zelador
que observou coisas sobre a política muito inteligentes. Conversei com o médico
que contou uma piada engraçada. Conversei com o vizinho advogado que tinha uma
proza muito agradável. Conversei com a mulher do quinto andar que tinha uma boa
percepção sobre a vida. Todos me pareceram enigmáticos e completos.
Continuei a seguir meu
caminho pela calçada acompanhado da minha solidão, pensando: quem sabe numa próxima
ocasião quando de novo encontrar-me...
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