VIÉS

FABIO SOMBRA

O som rolando no carro era “up”, bacanérrimo, som mesmo de responsa.

Tudo ia bem. Velocidade controlada acima dos cento e dez, curvas cantando pneu, alegria e furor contagiantes. Mano sombra, no banco do passageiro, reclamava da carteira enrugada que não deixava a tirinha no volume e tamanho perfeitamente aceitável para uma longa e contínua aspirada.

- Se liga irmão! - eu disse - Sorve logo isso aí e prepara pra mim.

O cara é irmão do peito, pessoa nobre, sincera, tenho orgulho da sua amizade.

Com carinho preparou uma grossa tira, serviu com delicadeza frente ao meu rosto, enquanto eu dirigia, e por poucos segundos amavelmente segurou a direção para que eu pudesse aspirar.

- Porra mano, tu é o cara...

A conversa fluía tranquilamente, num clima gostoso de amizade sincera, sem amarras ou máscaras.

Começou a contar suas experiências, o quanto aprendeu com o lado negro que certamente eu nunca vivenciara.

 pensava eu: ...lá vem a ladainha...do quanto sou fodão, as treta que vivi, toda aquela estória como se fosse na terra o único à conhecer de perto a maldade do mundo...e por isso fazia dele o sujeito mais importante. Eu também já vivi coisa semelhante ou piores, pensei...Nem por isso sou um fudido...tenho carro, minha casa, família, dinheiro no banco...

Mas seu conto, que valia muito mais que mil réis, mostrou-se uma caixa aberta de sentimentos compartilhados. A caixa de pandora de um ser verdadeiro e desnudo, que confiou suas angustias a mim.

- Meu pai foi preso, eu tinha treze anos, diziam que ele abusou de um menino de quatro anos, vizinho da gente. Não acreditei, meu pai não faria aquilo. Conversei com ele e me garantiu que era mentira. Defendi o filho da puta com todo meu amor. As pessoas comentavam e eu negava, inocentava o velho, arrumei todo tipo de briga. Até que a policia depois de meses de investigação, concluiu. A perícia comprovou que era sêmen dele. Meu mundo desabou, fui na cadeia, precisava da verdade, até que me confessou. Nunca mais soube dele. Minha mãe era tudo que eu tinha, uma santa mulher, dedicava sua vida para mim e meus três irmãos, duas irmãs e um irmão. Trabalhava, ralava, tudo pra alimentar a gente, não deixava faltar nada. Podia não ter nada em casa, mas comida tinha. Defeito dela era ser namoradeira, mas também coitada, não conseguia ficar sozinha, sentia muita solidão. Namorava um bandido, dizia que era o maior amor da vida dela, eu não tava nem aí. O namorado foi preso, Ela sempre comparecia à visita íntima. Levava comida. Só que aqui fora tinha um casinho com um cara do bairro. Minha mãe era uma santa, só não gostava de ficar sozinha. O cara na cadeia ficou sabendo que ela tinha namorado fora. Quando livrou-se solto matou minha mãe e o namorado dela. Eu dispiroquei, fiquei muito louco, botei o terror. Nessa época convivia com os parsa do tráfico. Era de menor mas já carregava pistola, fuzil. Falei vamô buscar esse cara. Irmão...com certeza ele foi pro inferno do jeito que o diabo gosta, cuidamos pra ir só com passagem de ida, na primeira classe. Sei que passei uma estadia na Casa do Menor, não pelo ocorrido, porque a policia não solucionou, mas por um roubo mal sucedido.

Era muita sinceridade e desabafo com que confiava seu relato, de maneira que me emocionei pela grande amizade depositada, talvez não fosse eu digno de retribuir tamanha verdade.

Mano...tua estória realmente é triste...

É irmão, já vive muita coisa ruim, mas não tenho que reclamar da vida, veja só, hoje estou aqui do seu lado, um cara firmeza, longe de qualquer parada errada...estudado, cabeça, tu é um cara de honra, te considero muito...

Dentro dos meus pensamentos e considerações achava que não merecia tamanha demonstração de amizade, porque apesar de tudo uma réstia de reprovação e desconsideração lhe atribuía, e, a qualquer momento, sabia que jogaria na cara dele o quão desprezível achava que era. Esperava o momento de apontar o dedo bem na cara dele e dizer: - tá vendo como você é errado!

Até que chegou o dia.

Estava eu, o mano sombra e meu amigo Garcez, num bar frequentado pela nata, xiqueza e proba sociedade brasileira. Algumas boas cervejas importadas tinham sido consumidas na mesa, só que o garçom deixara de marcar cinco delas. Quando a conta chegou sombra fez questão de olhar, e disse: que vacilão, não marcou cinco cerva.

Sem pestanejar chamou o garçom e disse: irmão..tu não marcou cinco cervejas, tá cansado cara, se liga no serviço, imagina teu patrão descontar do seu salário. Fica esperto, vai lá e acrescenta na conta...

Imediatamente eu e Garcez: - tu é burro, cara. Pô, a gente tinha ganhado cinco na faixa e você faz isso...