ONTEM

JOAN E CARL MEG BROCK


Houve uma época em que a coisa mais importante era a vida, onde pessoas se preocupavam umas com as outras, onde um pé de açafrão era valioso, onde se tinha bons vizinhos. Essa estória remonta este início:

...era uma noite chuvosa, de relâmpagos que riscavam o céu, cujo trovão que se seguia dava medo, mas nada mais pavoroso do que a ideia da casa destelhar com a ventania que soprava do noroeste com força incalculável.

Nosso filho ardia em febre, ainda que sua mãe fizesse compressas com água fria. Jamais eu poderia permitir destelhar a casa e deixar cair sobre nossa família torrente água que desabava em fúria dos céus.

Eram épocas difíceis, onde o vizinho mais próximo morava a quatro quilômetros de distância. Durante o dia o percurso parecia ínfimo, muito fácil de se alcançar, porém nas condições horríveis e belicosas declaradas por aquela tempestade, certamente não haveria vizinho possível para se pedir ajuda.

O vento zunia por todas as frestas anunciando com seu rugido derrubada iminente de toda estrutura, não deixaria nada em pé. A mãe confortava o filho passando-lhe segurança que ela mesma naquele momento não detinha diante da expectativa do pior, mas, ainda assim, com forças de uma guerreira protetora mantinha sua prole segura.

As luzes das velas tremulavam hesitantes e com as mãos em forma de concha protegíamos as chamas para não apagarem cada vez que lufadas de vento transpassavam minúsculas frestas entre caibros sólidos e resistentes de madeira de lei, mas que naquele ponto em particular faltava rejunte de barro maciço, misturado com palha seca, casca de ovo e sisal.

Precisava agir imediatamente - pensei. Foi quando sem hesitar decidi pegar quatro cortes de couro de vaca duros e impermeáveis como o chumbo, curtidos e costurados com o mais resistente entrelaçamento de sisal, formando uma peça de curtume grande e resistente o suficiente para segurar as telhas que sucumbiam ao vento.

- Vou subir no telhado e amarrar esse couro.

- Nossa Senhora Aparecida da Misericórdia, tenha cuidado – fez o sinal da cruz três vezes antes que eu saísse pela porta.

Alguém deveria ter aprontado coisa muito feia para deixar Deus furioso daquele jeito, pois o céu era negro donde despencavam gotas de chuvas tão grossas e pesadas que machucavam a pele. Subi no telhado e vi no horizonte raios destroçando árvores centenárias. O céu de um breu absoluto, impenetrável se iluminava na escuridão a cada raio de arrepiar a espinha, com luz azul cintilante tão forte e ofuscante que atordoava a visão, trovão seguia ensurdecedor. Parecia o dilúvio do fim do mundo.

Coloquei o couro nas telhas que se levantavam e com cordas de sisal amarrei firmemente nas cantoneiras. A água cortava como navalha soprando do lado noroeste carregada por ventos que me faziam balançar e temer despencar como saco de trigo. Mas, a retidão da minha missão me fazia aprumar com força dos músculos retesado na beira.

Não foi fácil, mas foi compensador todo esforço: estávamos todos, a família reunida no aconchego seguro do lar, com brasa do toco que queimava sobre nossa pequena fornalha aquecendo a vida disposta e aconchegante esparramada no colchão macio no canto da casa, como animais aninhados e protegidos.

A tempestade lá fora rugia como fera, gritava como horda de monstros, batia na terra com força, impondo-se retumbante a natureza incontrolável. Juntos abraçamo-nos na segurança compartilhada e dormimos o sono dos medos cansados deixando a ordem das imagens oníricas acalmarem nossas preocupações e fazer a noite de tempestade se esmaecer numa lembrança distante, distante, distante...

Quando os primeiros raios de sol anunciaram a manhã do dia seguinte, os ventes fortes já não sopravam, o dia claro calmo já não imprimia pavor, pudemos conferir os danos causados pela tempestade.

A visão estarrecedora provocou sentimento desolador quando abrimos a porta e vimos que tudo ao redor estava arrasado. Não mais havia plantações de trigo, simplesmente estava destruída; a roseira ao lado tinha sido arrancada; as abóboras, milhos, girassóis, stevias estavam todos caídos no chão, ceifados do caule e do solo.

Via-se ao longe que o vizinho distante também sofrera a mesma destruição, pois indícios da perda de sua principal subsistência era nítida naquela paisagem caótica.  Certamente foi a pior tempestade dos últimos séculos.

Diante do cenário de tais acontecimentos, famílias se reuniram para discutir saídas, medidas, lamentar o perdido. Nesta reunião ficou acordado que a partir de então todos se ajudariam mutuamente, cada um contribuiria com sementes guardadas, escondidas; toda reserva adquirida seria compartilhada; toda fome e sede saciada; e quando um ente não suportasse sua cota de trabalho encontraria ajuda para continuar. Fez-se a união para que toda coletividade não perecesse e caminhasse em direção da ascensão.

Assim se sucedeu e logo ficou claro que tal empreitada somente alcançaria seu essencial objetivo se houvesse uma liderança de confiança que pudesse colocar ordem na desordem, método na prática, regras nas discussões, decisões nas resoluções contrárias. Assim, naturalmente surgiu o Rei e os súditos.

O Monarca ordenava, concentrava, calculava, delegava, planejava, traçava táticas, coordenava estratégias, se apropriava, pensava por todos aqueles que não mais precisavam pensar.

Com ele ajuntaram-se os nobres, séquitos, vassalos, compadres, interesseiros, aproveitadores, sacerdotes, curandeiros.

Nunca mais ninguém perdeu nada, nenhuma tempestade arrasou plantação, mas, cada dia, em período de trinta dias, todos deixavam um quarto, depois um terço, depois meio de toda produção nas mãos do soberano.

A comunidade ascendeu, transformou-se em cidade grande, desenvolvida, onde cada membro labutava e entregava parte da sua vida, para que o Rei pudesse continuar forte suprindo as necessidades de cada membro da cidade.

Os entes consumiam e sentiam necessidade de consumir ainda mais e melhor, olhando para o outro como se desejasse ter mais, acumular mais, juntando coisas úteis e inúteis para si próprio, intencionando ser único. Disto nasceu a diferença.

Dela surgiram riqueza e pobreza, a vontade, ganancia, nem que para isso fosse preciso utilizar força. Surgiu a violência e as armas letais. As armas letais deram inicio aos complexos sistemas de defesas que foram colocados entre pessoas para separa-las umas das outras, demarcar espaços, garantir distância do irmão, sob pena da insistência em aproximar-se ser punida com sentença de morte.

Então, matar já não era surpresa, se matava de todas formas e quantidades, todos os dias. Eram épocas difíceis, foram criadas fortalezas e de outro lado casebres ignóbeis.
 
 Ninguém mais ilumina a casa com vela; ninguém guarda curtume na prateleira da dispensa, ninguém se preocupa com o vizinho estar bem...

Mas, a vida continua importante, nos lares pessoas preocupam-se uma com as outras, açafrão é valioso para um prato gourmet.